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Textos

Tentacular

Realizadas entre 2008 e 2023, a exposição T E N T A C U L A R de Renata Pelegrini exibe pela primeira  vez parte de um conjunto de obras reunidas. Tal qual na língua portuguesa, tentacular exige a mesma  grafia e sentido em diversos idiomas, como no espanhol, italiano e inglês. O vocábulo tentáculo vem  do latim tentaculum e significa antena, de tentare, sinalizando o sentir e o tentar. A aranha, um  aracnídeo tentacular e o polvo, um molusco tentacular, possuem dedos como humanos, e por sua  tentacularidade são capazes de estabelecer sofisticadas redes e interconexões de linhas, não pontos,  nem esferas. Articulando tarefas, circunstâncias e ocasiões ao longo dos preparativos da mostra, houve  um instante específico em que Renata teceu um comentário exprimindo sentir-se cheia de braços como  um polvo. Sua sensibilização imediata foi então a de compartilhar através de conversas, um texto de Donna Haraway (1944), bióloga e filósofa estadounidense, entitulado: Pensamento tentacular:  Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno, de 2016. Sob a perspectiva da geohistória, os polvos são  chamados de aranhas marinhas não somente por sua tentacularidade de ventosas, mas também por  seus hábitos. A relação de Gaia com Caos é antiga junto a ciência e filosofia. Selecionadas para a mostra,  a artista apresenta em chiaroscuro uma teia tênue de obras, situações e épocas distintas de sua  produção, conformando em p/b e cor uma malha de laços de luz e sombra. T E N T A C U L A R é o nome  tanto de sua pesquisa artística, quanto a busca e seu modo de operar incessantes. Representa o lugar  em que os horizontes de terra (raízes), água (mar) e ar (céu) se encontram em uma só direção/  perdição. Sem definição temporal, a ideia fossilizada de um futuro é a sua reciclagem de conceitos,  práticas e materiais. Na exposição nos deparamos com o rearranjo do barulho e a pausa para a  observação. A sensorialidade do silêncio está abaixo do solo e no fundo do mar. O antagonismo do  ruído branco e da quietude obscurecida surge presente nos detalhes da arquitetura e na iluminação  das salas expositivas. O corpo da artista se mostra ancorado ora em terra, ora solto no espaço de  interseção de marear, que vai da costa ao alto mar. Com o marulho e o barro, vem a bonança, depois  da tempestade.

O famoso e premiado documentário Professor Polvo (My Octopus Teacher, 2020) de Pippa Ehrlich e  James Reed difundiu a realidade da comunicação multiespécies. Todos somos líquens, diz o  fitolinguista. Nos organizamos como cogumelos, assume a micóloga. As cidades parecem um recife de  coral, imaginam os oceanógrafos. Vamos jogar cama-de-gato?, convidam as crianças. Um dos  constantes trabalhos de Renata é o exercício de reorganizar arquivisticamente sua própria produção.  Entre textos influentes lidos recentemente pela artista consta o Autobiografia de um polvo e outras  narrativas de antecipação, 2021, de Vinciane Despret (1959), filósofa belga das ciências e natureza. É  mais uma referência fortalecedora que a moveu para a exibição de peças que se situam entre a calmaria  da margem e o desfixamento da borda.

O agrupamento de obras proposto pela mostra T E N T A C U L A R é inédito. Como uma carta náutica  mestra, aparece a peça escultórica de papel com escrituras Olísipo (nome de Lisboa na Roma Antiga) juntamente a Attaccati, que se assemelha a um instigante diário de bordo da vida cotidiana, realçando  a fragilidade da vida durante a fase pandêmica mais dura. Já Strata dispõe lado a lado expressões caligráficas, e Mappa alinhava desenhos geográficos como mapas de navegação em cidades, plantas

de urbanismo e cartografia. De Senciente (o significado é o de seres que percebem com os sentidos),  temos montadas sobre superfícies planas, como gabinetes de arqueologia e paleontologia, as séries  Fósseis e a Artérias e Entranhas – com máscaras, pincéis, corais, cirandas, agulhas, gravetos, moedas,  ferramentas, insetos – uma homenagem em preservação da memória da terra ancestral. Sob uma  estrutura de árvore genealógica, as peças criam relação com a história do entorno expositivo,  resultando em uma catalogação artístico-científico objetal de universos femininos das antepassadas da  artista. Cartas de marear faz recordar o método imemorial de uso instintivo da forquilha (hidroestesia)  para encontrar água nas regiões mais secas do planeta. Os objetos são inspirados em um gráfico sensível, construído por gravetos como uma bússola rudimentar, e que servem para reconectar estados  de espírito e despertar o senso de rumo na navegação oceânica dos canoeiros polinésios da  antiguidade.

T E N T A C U L A R é o atual corpus de Renata Pelegrini. A percepção de destreza do jogo de cartas na  mão imbuído no labor da artista é a hipótese da curadoria. Como um quebra-cabeças, a vontade de  conectar por encaixe fragmentos do convívio de trocas, une para esta exibição desde noções de mind  maps a impressões quase ficcionais do cenário subaquático protagonizado por Dumbo octopus. Em  seu livro lançado durante o período da mostra enxergamos bem o seu milieu de artista, pois trata-se  de uma singular manipulação da edição, um embaralhar de trabalhos no finito, incitando acertos,  enganos, tentativas, entrelaçamentos e acasos em infindáveis combinações.

Marcio Harum

Infiltrar-se no mundo pelo gesto – A força alquímica de Renata Pelegrini

Renata Pelegrini é uma artista que se desdobra em muitas e de sua obra – que mistura o vivo da  existência a um caráter insondável – sobressai algo precioso, uma espécie de abalo semântico, uma fissura  ou infiltração que se estabelece na relação com o real. Em uma língua indecidível e indecifrável – ora  aquática, ora povoada de matérias diversas e mais palpáveis – ela recusa o sentido, perfura o saber e  assume o ensaio e a porosidade como eixos de uma invenção singularíssima.

O corpo da artista se infitra no corpo do mundo. Passando pelas águas e se endereçando aos  objetos e matérias diversas, esparrama seus gestos de invenção e é tocada pelas coisas, delas guardando  uma vibração íntima. Seu percurso – uma costura singular fisgada pelo enodamento entre gesto, memória e  materialidade – culmina no projeto “Trilogia da água” e nos convida a perfazer esse caminho de tessituras e  escrituras íntimas.

Da matéria mineral, de plantas ou raízes aladas, ela extrai a força do fragmento e faz, dessa lógica  segmentária, potência e sutileza. Seu olhar atravessa o claro e o escuro e cria coisas – como uma bandeja  de ossos ou uma mesa – em que são depositadas memórias reinventadas do arco da própria existência. São  artérias ou corais, transmutações, agulhas antigas, pincéis, troncos de plantas, tudo em uma coexistência  que conjuga dentro e fora, corpos natural e pulsional, poesia e ciência.

A ideia de infiltração está em tudo, como nos moldes de bordados da avó que se transformam em  coluna vertebral que se transformam em corais que, por sua vez, se transformam em artérias, em um fluxo  de linhas e vísceras. Em seu trabalho – que tanto perfura quanto cria a sutura – havia, desde o início, uma  inquietação que condensava camadas, texturas e gestualidades múltiplas na pintura, que agora retornam e  se expandem em uma cartografia, ao mesmo tempo, íntima e política.

Com movimentos incessantes, Renata Pelegrini perfaz caminhos de uma vida. Do gesto da pintura  se encaminha para uma pulverização infinita da gestualidade, em que pode fazer o decalque de portas e  monumentos, capturar relevos encontrados pelo mundo, criar escritas e ranhuras da superfície ou das  profundezas do oceano.

As primeiras peças de cerâmica fria foram chamadas “artérias e entranhas”, a maneira mais  profunda para nomear o visceral que sempre existiu como norte de seu trabalho. Há também os “fósseis”  que trazem o burburinho de potências femininas, reproduções de velhos modelos de tricô ou pedaços de  lugares – resíduos de cidades do outro lado do oceano. Sua relação com a origem se estabelece pela  sensibilidade e dedicação ensaística e múltipla com suportes, materiais e objetos diversos, da relação com  máscaras de origem ibérica a coleções de pequenos elementos improváveis como raízes de plantas, que  tocam na dimensão inaugural de diversas maneiras.

O trabalho de Renata Pelegrini é, antes de mais nada, uma escrita que, como em “Água viva” de  Clarice Lispector, se dá como uma experiência do cruzamento do limite, no mergulho na selva de palavras  ou imagens, no transbordamento como experiência radical com a linguagem.

A literatura de Clarice Lispector é, para o ensaísta Silviano Santiago, “um rio que inaugura o seu  próprio curso”. A personagem de “Água viva”, familiarizada com as imagens de cavernas e o mistério  aquoso, faz puro improviso com as palavras e arrisca-se a cruzar as fronteiras entre linguagens. É também a  partir de uma experiência inaugural que a obra de Renata se revela. A artista, tomada e encantada por  matérias tão heteróclitas, escreve sua vivência de sonhos e descida às raízes, um mergulho no abissal. Essa  analogia – entre o processo a que se propõe a narradora da obra lispectoriana e o mistério da criação de  Renata – revela zonas de passagem que operam conceitualmente no exercício poético e artístico. São  conchas, raízes aladas, fendas e vazios, aquilo que vive nas profundezas do mistério, máscaras, plantas

epífitas, pincéis. Tudo vive no lusco-fusco e no enigma de uma memória tão ancestral quanto futura,  fazendo lembrar de uma bonita frase de Ailton Krenak: “o ancestral é agora”.

A artista torna-se então inventora de tempos e geografias, com capilaridade e porosidade que  incluem o animal, o mineral, as plantas, o oceano. Perseguem-se aí os movimentos do próprio corpo, das  coisas todas, um novo saber – ou um não-saber. São giros e fluxos que vão se revelando ao longo do  percurso: da caligrafia disciplinar como professora, ela se volta para a caligrafia oriental, uma maneira de  impregnação que acontece pelo desenho, gesto ou escritura. Da mesa posta com gravetos, corais e agulhas  da avó, uma presença corpórea pulsa e se expande como uma força que, oriunda do início do trajeto pela  pintura, se ramifica através de fósseis, raízes, conchas e objetos de margens e espessuras diversas. Os rastros da vida são atualizados na obra, enquanto a obra atualiza a vida e o mundo.

Em tantos movimentos, a água aparece como o elemento das transações e das mutações, como o  esquema fundamental das misturas. Conjugando rigor e fruição, Renata Pelegrini aposta em um território  em que o escondido e o indizível afloram junto da imagem e a explodem por dentro, revirando o mundo e  propiciando a aparição de um fluxo que vagueia e tenta encontrar ponto de ancoragem na indeterminação,  em um lugar movente que rejeita as representações prontas. Um sentido, como na poesia, sempre por  fazer.

No belíssimo ensaio “Elogio da mão”, Henri Focillon afirma que a possessão do mundo exige essa  espécie de faro tátil. Ele diz: “A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objeto é habitado pelo peso,  que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só  corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam”. Esse é justamente o  lugar da convocação do gesto na obra de Renata Pelegrini, que sabe que são necessárias as mãos para que  se produza uma experiência de mundo que o gesto encarna. A gestualidade é pensada como uma ética a  ser reinventada e invocada. Há uma materialidade orgânica e visceral – como ela mesmo define – que rege  as figurações e desfigurações de seu trabalho, em um caleidoscópico de intensa delicadeza onde  rearranjam-se aspectos com imensa fineza estética.

Não por acaso, todas as expansões, exercícios de redução e movimentos concêntricos e excêntricos  desembocam nas águas. Trata-se de trabalho múltiplo, aberto ao campo poroso da existência, onde arte e  vida são articuladas de maneira única e vertiginosa. Suas ideias inquietas e fulgurantes em relação preciosa  com o vazio que abarca a força das ondas, a quietude da escuta do barulho de uma concha, artérias e  corais, pulsantes, criam uma espécie de cosmologia aquática e corpórea. Sua pintura se expande e encontra  nos limites da linguagem e da matéria aquilo que o psicanalista Jacques Lacan nomeou como real. O  inefável que vive na escrita inventada pela artista, vive também no gesto do calígrafo que “escreve uma  letra que comporta uma dimensão que não serve à comunicação e, no entanto, imprime-se algo, escreve-se  algo”.

Numa alquimia singular, Renata Pelegrini cultiva os fragmentos como relicários que guardam o  essencial. São estilhaços que abalam um saber mais ou menos estável e colocam seu trabalho na borda  desse fora de sentido, perfazendo o caminho sinuoso do não-saber.

No decorrer da história da humanidade as águas brotam como símbolo de transgressão e  imaginação, transbordamento criativo, dialética do reflexo e da profundidade, substância viva das imagens  poéticas. O encontro da artista com as águas sutiliza e expande as formas e feixes de relações entre  medidas e grandezas, alcança a força do inefável como aposta em uma fronteira para além dos limites  prontos, revelando o indizível e o impossível.

Bianca Coutinho Dias

Trilogia da água

TRILOGIA DA ÁGUA é um conjunto de expressões poéticas em minha prática artística. Ondas,  Corais e Mar Profundo são peças onde a memória da água aparece através dos sentidos e  sensores do meu corpo. As três obras suscitam um ambiente de relações entre diversos  recursos artísticos, aprendizados e experiências. São uma tríade de inflexões que formaram  laços após minha participação na OCEAN / UNI, principalmente através do estudo das ideias de  Astrida Neimanis.

ONDAS é uma narrativa de laços em uma sequência de desenhos que retratam um fluxo  imaterial. Estas imagens interligadas assemelham-se a uma criação biológica que  eventualmente gera conchas, como na imagem final, pintada em papel de 9 metros de  comprimento, utilizado para este trabalho.

Desenrolar parte do papel a cada dia transformou ONDAS em um diário do período de  residência artística que passei em Lisboa, onde foi feito. Os movimentos do corpo no vai-e-vem  da extensão do papel assemelhavam-se a ter sido atingida por ondas de memórias, uma após a  outra. As intensidades da crista e da calha foram lembradas na instalação do trabalho com  minha escrivaninha e cadeira, que serviram de cenário para explorar as ideais de continuidade e  circularidade.

Atravessar o Oceano atlântico a partir do Brasil foi um convite para me reconectar com minhas  raízes na Península Ibérica. A viagem invertida, feita um século antes pelas bisavós da minha  família, ficou na minha memória como um sentido de direção que eu precisava reconhecer.

Essas histórias femininas com água construíram contos de cuidado e parentesco que traduzi  como investigações de desenho e movimento de ondas. Instrumentos de artesanato, como fios  de lã e agulhas de tricô, foram trazidos de volta a minha mente e ao meu corpo, e foram  amalgamados com outras imagens de ciclos simbióticos, algas, rendas e conchas – elementos  que se entrelaçam na concepção de um novo mundo.

CORAIS é uma coleção de criaturas marinhas feitas em cerâmica fria. Elas começaram como  modelos negativos de superfícies sobre as quais a massa de modelar era pressionada. Tocar a  ‘pele’ do tecido tricotado à mão por mulheres, ou a arquitetura da cidade, e até os objetos do  meu estúdio, significava estabelecer relação com a memória e os saberes ancestrais.

A união é um conceito básico em CORAIS. Quando a investigação se aproxima de recordações e  geografias de ancestralidade, as peças finais assemelham-se a fósseis; não só pela morfologia,  mas também pela ‘presença’ do elemento que evocam no vazio. É uma combinação de tempos  vividos que me interessa como resíduo de um fluxo com o qual quero aprender.

Em trabalhos posteriores, a massa é moldada à mão, e não mais em contato com as superfícies.  À medida que as ‘esculturas’ se tornam mais autônomas, outras questões que me interessam  são adicionadas a essa ecologia marinha. E assim, ‘Epífitas’ originou-se da minha pesquisa de  plantas socialmente amigáveis que apenas vivem juntas para companhia, sem serem parasitas.

‘Escutadores’ encarna o desejo de ouvir e aprender com o que se desconhece sobre o mar e os  saberes ecológicos. ‘Auga’ é a minha textura coral poética, feita de pequenas peças combinadas  para a construção de uma nova forma, cujo nome, aqui é a palavra água na língua mirandesa,  do norte da fronteira entre Portugal e Espanha; lugar de forte fusão cultural. …

MAR PROFUNDO é um vídeo performativo e uma experiência de ativação de objetos. Ela dá luz  às minhas tentativas de interagir com o desconhecido – neste caso, minhas criaturas inventadas  e outros objetos em meu estúdio. No escuro da noite, iluminado pelo vago reflexo de um  retroprojetor analógico, MAR PROFUNDO é uma metáfora da profundidade do oceano.

Sob a luz, os objetos tornam-se protagonistas de histórias não contadas que só podem ser  descobertas pelas lentes do retroprojetor. O dispositivo torna-se uma lupa de novos caminhos  que o trabalho pode explorar, sendo utilizado como principal fonte de investigação. Mediador  de realidades, o retroprojetor faz da luz e da sombra, modelos negativos e positivos, e outros  binômios, objetos de estudo e relação. Nesse sentido, o estúdio se torna um laboratório para  mergulhos profundos no escuro.

No vídeo, as especulações sobre o fluxo de saberes ancestrais e as conexões com outras vidas  na terra, como raízes de certas plantas, são questionadas a partir do encontro do meu corpo  em cena com as criaturas projetas.

RENATA PELEGRINI é uma artista brasileira que já morou nos EUA e Europa, e agora está radicada em São Paulo.  Ingressou na TBA21_Academy OCEAN/ UNI em 2020. Usando uma abordagem investigativa que combina diferentes  recursos artísticos, interesses científicos e experiência pessoal, ela desenvolve sua expressão artística de maneira  híbrida à medida que os processos se desenrolam. Graduada em Letras e Educação pela Universidade de São Paulo  como primeira formação, Renata trabalhou em camadas da comunicação por anos. Quando se diplomou em Artes  Plásticas, a afinidade entre humanos e não-humanos se tornou um interesse que se aprofundou após sua residência  artística no Hangar Lisboa, em Portugal, em 2018.

Renata Pelegrini

A voz de uma pintora

Por ocasião de sua primeira exposição individual, em fevereiro de 2016, foram publicados, em  catálogo e jornal, textos sobre Renata Pelegrini com apontamentos que interessa retomar aqui  para um pensamento sobre o momento atual de seu trabalho. O tangenciamento do moderno a  partir de aproximação feita por Taisa Palhares entre algumas obras da exposição e Porte fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A coincidência vista por Antonio Gonçalves Filho  entre aspectos da pintura de Renata e uma ambiguidade fundamental inscrita nos meandros da  representação naturalista, em telas de Claire Sherman. A lembrança de Água Viva (1973), de  Clarice Lispector, um livro que pensa sem parar o lugar da enunciação e no qual vemos surgir  a voz de uma pintora.

Recentemente, parece que a produção de Pelegrini vem se afiançando cada vez mais na  ambiguidade. Esta pode ser sintetizada por um procedimento que transa os universos da pura  visualidade e da literatura, sustentado por um conhecimento específico de questões  substanciais e psíquicas, tais como a possibilidade de um automatismo subsistir pela liquidez e  tempo de secagem da tinta acrílica quando implicada no ritual da caligrafia. Assim, os termos  quantitativos dessa produção não permitem mais generalizações que no contexto de sua  exposição inaugural pareciam indisputáveis. Porque os aspectos formais ali confirmados eram  aqueles que se fundam na singularidade, obtidos, por seu contingenciamento metafísico, a  partir da escassez ou inexistência presumida no mundo natural. Diversamente, a investida  filosófica que a artista faz vem por um espírito declarado de teste e pretensão de um  escaneamento de grandes áreas e combinações cromáticas, bem como dos gestos mais escuros  que, nessa temporalidade da repetição, não cabem mais na espacialidade bidimensional, qual  anel de fumaça que só se vê por pouco, um sentido que aponta justamente para instância de  enunciação, para a deliberação anterior ao golpe “fatal”.

Lembra-se aqui de um políptico realizados em 1965, por Wesley Duke Lee, no Japão. Em um dos  quadrantes, o artista, que também esteve bastante envolvido com a caligrafia, cria o que parece  um gesto formalmente conclusivo e emergencial, inscrito em preto, como se nas mesmas  contingencias de uma tela de Franz Kline, mas que aparece literalmente amarrado com uma  corda, como se precipitasse um processo consumado, apropriável e repetível, como se fosse o  galho de uma árvore que, uma vez podada, se aprimora, restaura. Testemunhas contam que  Duke Lee produziu esse conjunto em espaço exíguo e que singularizou a relação de frontalidade  ao compor as partes no chão, aproximando a pintura dos jardins japoneses, como uma lida com  o natural no lugar da linguagem artística, tudo posteriormente articulado numa espécie de  biombo.

Nas palavras de Renata, encontramos, hoje, essa mesma predisposição à teatralidade,  confessada com limpidez: “O presente me interessa enquanto tempo e principalmente como  lugar. A arquitetura e o meu entorno sempre foram índices com os quais meu corpo se  relacionou para equilibrar-se entre o agora e o consecutivo. Em minhas pinturas e desenhos  essa dinâmica tensa está na presença do gesto e também da rapidez da execução; ambos  construindo uma estrutura arquitetônica que é ambígua e um lugar que é movediço: uma  quebradiça solidez. E que lugar é esse, que tem um cheio e um vazio, que requer energia para  ali se fixar e empenho similar para abandoná-lo, numa sobreposição de forças e leituras? Pra  mim é o lugar do tempo presente e da simultaneidade, da energia vital e da morte: é o lugar  que o corpo testemunha.”

Duas series mostram bem o fato da artista vir tencionando sua disciplina pictórica ao criar  expedientes paralelos que intensificam nossas percepções de esgotamento do suporte e nos  trazem um virtuosismo sem disfarces em suas alternativas para a aproximação canônica com o  quadro: no conjunto de mapas que realizou durante residência artística em Lisboa, a  frontalidade é deliberadamente quebrada por um registro feito a partir da correlação intuída  entre os traçados, cujo grau de automatismo não conseguimos avaliar para além de sua  conexão indicial, com percursos e geografia real na cidade. As formas não seriam mais  arbitrárias ali e dão impressão de proximidade e até intimismo ao que veríamos das alturas,  nesse lugar mítico de fusão de uma visão animal e humana.

Já em instalação sem título, feita entre 2017 e 2018, o desejo de deslocar a pura gestualidade  para fora do contexto da pintura se manifesta a partir do uso de projetores que imprimem nas  paredes um inventário criterioso de experiências com o grafite, próprio ao desenho, que  aludem a uma uniformidade técnica cinematográfica. Nesses dois projetos, a atualidade do  fazer artístico, a enunciação, não é mais balizada pelo peso da tradição pois se desprende e  retorna em investidas circulares como que para promover uma naturalização do que era  singular ao devolvê-lo ao contexto da experiência em que a fantasia ainda cria abundância.

Rafael Vogt Maia Rosa

Renata Pelegrini

“…as pinturas não são como creem alguns, sentimentos (…), são experiências. Para pintar uma  única tela, é necessário ter visto muitas cidades, pessoas e coisas.”

Renata Pelegrini chega a esta segunda individual (a primeira na Galeria Janaina Torres)  reafirmando sua dedicação à pintura e ao desenho. Nesta trajetória, relativamente recente,  suas pesquisas e questionamentos acerca dos espaços e das sensações fenomenológicas  tornaram-se mais consistentes.

Renata produz a partir de fotografias (próprias ou de terceiros) de locais que ela tenha visitado.  Essa relação com estes espaços transformados em lugares devido ao contato experiencial é  primordial para entendermos como funciona sua concepção. Paradoxalmente, nas telas e  papéis , os espaços que os originaram pouco importam. É a dimensão do que não é visível,  captada pela artista, que transforma-os em nenhum espaço e, por isso mesmo, levam o  espectador a todo e qualquer lugar. O apagamento de referências reconhecíveis contribui,  ainda que a artista não faça disto um artifício produtivo, para este entendimento e uma prova  desta integridade com seu processo é o fato de que durante uma fase de sua produção ela se  questionava sobre nomear ou não os trabalhos. Penso que a clareza que ela possui hoje sobre  este dado não deixa de ser relevante.

Uma das dimensões mais poderosas da Arte acontece quando ao lidar com o real o artista não  se contenta em simplesmente reproduzi-lo, mas permite ao outro (re) interpretá-lo. É como um  jogo que oferecemos ao nosso pensamento no qual ele vai reconhecendo o terreno,  aprendendo as regras, decifrando os sinais até que ele esteja completamente dominado. E  onde muitas vezes desaparece o interesse e nos acomodamos. Se, ao invés disso, temos de nos  manter em movimento pontos de vista se alteram, muda o que vemos. É no jogo entre aquilo  que é reconhecível e o não reconhecível que nosso pensamento se desloca; são nestes  trabalhos de Renata Pelegrini que ele encontra um campo por onde caminhar. Todavia, para  que isto ocorra, torna-se imprescindível a presença de aspectos que dependem das obras para  existir, mas ocorrem externos à elas como integridade, inquietação ou potência pois, por  exemplo, a potência destes trabalhos não vem da pincelada vigorosa, do traço assertivo, da  incisão mínima e certeira, da visceralidade do negro ou de aspectos matéricos; é pela  possibilidade ao pensamento de quem vê que a potência surge.

Da mesma maneira se apresenta a inquietação. Ainda que não possamos dissocia-lá do fazer  artístico (qual artista pode prescindir dela?) e ela se apresente mais “visível” na superfície da  tela ou do papel, a inquietude de um artista está na pesquisa, na dedicação ao fazer, na procura

de algo que ele nunca perdeu e que não sabe ao certo o que é ou como é. Essa necessidade é  um tanto inexplicável, mas em alguns artistas é tão forte que podemos senti-la; ela pode tornar se quase palpável, como se o artista se amalgamasse com aquilo que o inquieta.

No caso de Renata Pelegrini acompanhar este “amalgamar-se” ainda nos trará muitas  surpresas, descobertas e, claro, pensamentos inquietos. Intuo que ela partilhará conosco,  através de seus trabalhos, a ideia de que “sou o espaço onde estou”.

Apropriação (d’ápres) de Rainer Maria Rilke in Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. A versão original, com os trechos  alterados em negrito, é: ” …os versos não são como creem alguns, sentimentos (…), são experiências. Para escrever um único verso, é necessário ter visto muitas cidades, pessoas e coisas.”

Marcelo Salles

Antes da hora mais escura

O pictórico de Renata Pelegrini nos traga para um lugar outro. Instável,  desassossegado, desestabilizador. A abordagem contemporânea da paisagem pela  artista paulistana revela mais sobre esse sítio peculiar, cortado tanto por potentes  linhas de força como por traços menores, delgados e mais pontuais, além das camadas  de tinta, de cor e de luz que atestam embates intensos de diferentes naturezas. A  construção dessa imagem sedutora é o atestado da habilidade de Renata, que ressalta  por ferramentas visuais e conceituações mais relacionadas ao pensamento uma  existência fugidia e essencial e também um certo desconcerto do mundo.

Inicialmente, vem a discussão sobre qual é esse lugar. Em A Condição Urbana, o  teórico francês Olivier Mongin cria um tipo de nova teoria do urbanismo, lançando mão  de conceitos da filosofia, da antropologia e da psicanálise, entre outros campos.  Fugindo de um certo cinismo da ‘cultura de congestão’ de Rem Koolhaas, Mongin  investiga a fenomenologia do habitante atual das megacidades e as necessidades  centrais desses corpos, seja em limites, em relações, em trocas etc, no amálgama  maximizado de fluxos hoje, num nível informacional e também no âmbito imagético.  “Pensar em função do local é a oportunidade de reatar com a experiência urbana, com  os estratos que a compõem no seio da paisagem global. Porque é a paisagem, ela  própria, que deve dar corpo a uma outra apreensão dos limites”¹, diz ele.

Muito patente na produção constante de Renata é essa espacialidade marcada pelo  singular. Para comentar isso, é necessário conhecer um pouco mais sobre o processo da  artista em seus trabalhos e sua biografia. Graduada em letras, viveu períodos não tão  curtos fora do país, destacadamente nos EUA e na Itália. Professora de idiomas, teve na  caligrafia uma de suas atividades-chave nesses tempos, que forneceu a ela “disciplina e  um trabalho quase monástico”, como gosta de frisar. Passado o gestual da produção  nascente na pintura, o dado gráfico era predominante ainda no início, caracterizado por  um cromatismo sóbrio.

O recorte pictórico, então, se impõe, e ela utiliza com desenvoltura a acrílica, que pode  preencher tanto as superfícies mais comuns das telas quanto o linho, mais nobre e  poroso. Os tamanhos variam, porém, por meio de uma escala mais generosa, seu labor  encontra um notável florescer. Curioso é que a agilidade da acrílica a ajuda a reduzir o  tempo na realização das obras, contudo sua utilização parece ter uma duração  estendida, de uma dilatação temporal ampla – em outras palavras, atributos do óleo,  visto em geral como mais ‘denso’. Assim, os assuntos pictóricos saltam mais aos olhos – o fundo original que se esvai após a aplicação de layers e matéria de tinta; as pinceladas  por vezes mais concentradas, por vezes mais liquefeitas; a cor que pode ser resultante  de uma ação manual mais obsessiva ou se exibir mais dissolvida e escorrida, entre  outras características. Também é elogiável nessa área cromática a facilidade com a qual  ela emprega o preto e, em fases mais novas, o verde e o ocre. Desta forma, renova  referências tão distintas quanto Soulages e Goeldi, entre outros.

Tal lugar movediço construído por Renata ganha atualidade se pensarmos em como ela  cruza especificidades de cada linguagem. A da pintura foi discutida faz pouco, mas ela  certamente se relaciona com, por exemplo, a fotográfica. A artista utiliza registros de  segunda mão, disponíveis na rede, ou feitos por ela mesma sem o preciosismo da ‘boa’  qualidade. No entanto, sempre ressalta arquiteturas e locais que prescindem da figura  humana, mas cujos índices são bastante claros – ou seja, o dado vestigial da fotografia  se fortalece. Ao elaborarmos recortes com quadros da artista, por exemplo, também  surgem narrativas, algo opacas, como um audiovisual criado sem linearidade estanque,  cujos protagonistas estão desaparecidos. É também próxima a linguagem cênica, já que os espaços podem abrigar palcos de sujeitos contemporâneos, colocando lado a lado a incompletude das ‘cenas’ criadas por Renata e um certo teatro do absurdo desenvolvido  por personas em estado duradouro de solidão e solipsismo.

Já a obra gráfica da pintura de Renata é evidente, em trabalhos que são desenhos mais  ‘puros’ – com carvão, giz, sanguínea, grafite e pastel – ou mistos, em que há  componentes fortes da pintura. E o fino traço que aparece em numerosas composições  da artista lembra o que Paulo Pasta já realçara a respeito dos dois suportes:  “Temporalidade seria a palavra que marcaria melhor suas identidades e diferenças. (…)  Precisão e acúmulo, casamento de risco e condensação”². E ainda mais: a diagonal tão  presente nas telas de Renata reforça o comentário de Peter Pál Pelbart, no texto A arte  de viver nas linhas, sobre conceito desenvolvido por Deleuze. “(…) A linha de fuga ou  nômade é aquela que foge e faz fugir um mundo, como se alguma coisa nos levasse,  através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, ‘em direção de uma  destinação desconhecida, não previsível, não preexistente’”³, escreve Pelbart.

O corpus gráfico-pictórico da artista, então, sedimenta a prática da artista na  investigação persistente de uma paisagem móvel e que a inscreve fortemente na  contemporaneidade, fragilizando um certo léxico moderno colado a priori na leitura de  sua produção. Portanto, representados por Renata Pelegrini, pontos de fuga, pilares,  postes, guarda-corpos, perspectivas, mastros e outros volumosos testemunhos de  quebradiça solidez, entre a figura e a abstração, nos dão uma ideia pungente sobre a  nossa finitude.

Mario Gioia, julho de 2016 

  1. MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 240
  2. DERDYK, Edith (org.). Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo, Senac São Paulo,  2007, p. 87
  3. DERDYK, Edith. Idem, p. 285

Mario Gioia

O enigma da janela

Um dos quadros mais icônicos da pintura do século 20, e que se mantém  enigmático até hoje, é a tela Porte-fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A  composição, em tons de azulado, verde, cinza, mas predominante preto, coloca-se  entre a representação e a não-representação de um espaço conhecido, vagamente  explicado pelo título, sintetizando a relação do artista com a abstração, à qual ele  nunca aderiu efetivamente. Assim como em outros trabalhos do pintor francês,  desenho e cor vivem em harmonia, ou seja, não há a predominância de um sobre  o outro, posto que o objetivo é superar a dicotomia que domina a história da  pintura desde o Renascimento.

Nota-se que o preto sintetiza essa relação, na medida em que é tanto linha  quanto cor. Aliás, ele é o centro da composição, aquilo que “vemos” no interior (ou  seria exterior?) da janela, o local onde nosso olhar se fixa, emanando uma  luminosidade que ressoa por todo o quadro. Como se sabe, Matisse, o maior  colorista da arte moderna, foi também o pintor que mais soube explorar o preto  enquanto cor – emanação de luz – realizando uma série de pinturas na qual esse  tom tem um papel central. Se é certo que esse quadro faz uma referência direta à outra pintura magistral da arte francesa, Le Balcon (1868) de Manet, ele  surpreende pela completa ausência de narrativa. O que predomina é quase um  sentimento de suspensão de qualquer ação, e o jogo entre a claridade das cores  quase transparentes e a luz negra. É um arcano da pintura de todos os tempos, o  que abriu à arte novos caminhos.

A meu ver, a produção de Renata Pelegrini filia-se diretamente a essa  tradição da pintura moderna que hoje está sendo ricamente retomada por vários  pintores contemporâneos. De uma forma que é muito mais visual do que  intelectual, no sentido que não se trata de pensar conceitualmente a pintura, como  muitos artistas fizeram depois de 1960. Mas repensar suas questões a partir do  próprio fazer. Por isso sua produção relativamente recente, cuja pesquisa se inicia  no desenho, levando para as telas uma qualidade gráfica marcante, apresenta uma  enorme coerência.

Seus desenhos, realizados em carvão, sanguínea, grafite e giz, já trazem a  ambiguidade espacial que marcará o uso do preto como cor: ora são linhas que estruturam os espaços, ora são manchas, muitas vezes alcançadas pelo gesto de  apagamento. Neles há um equilíbrio espacial entre o lugar reconhecível e a  abstração, mas também entre o peso e a luz do preto que magnetiza o olhar e a  experiência da leveza por meio das zonas esmaecidades de cores transparentes.

No caso de suas telas, o preto permanece uma potência de luz que serve  como imã da composição, entretanto convivendo com tonalidades tão fortes  quanto ele: azul, amarelo, ocre, verde, cinza, terracota, vermelho, rosa, entre  outras. Se por um lado a construção do espaço parece mais evidente (e muitas  vezes a artista parte da observação de fotografias), a composição nunca é  exatamente fechada ou plenamente reconhecível. Predomina um jogo entre o  movimento de traços em diagonal, como a sugerir o ponto de fuga, mas que de  certa maneira é constantemente tensionado por formas ou massas de cor quase  abstratas. O que se tem é o equilíbrio provisório, acentuado pela exploração de  elementos que sugerem o inacabado, como o escorrimento de tinta ou a evidência  gestual das pinceladas.

O mundo não tão sereno das pinturas de Renata Pelegrini é muitas vezes  atravessado por um fino traço quase imperceptível, realizado com um objeto  pontiagudo que risca a superfície da tela. Na composição, esses traços tornam-se protagonistas de novas direções para o nosso olhar. Na verdade, são linhas de  força que desestabilizam o reconhecimento instântaneo do que seria uma imagem  do real. Neste sentido, contribuem para sensação de construção e descontrução  do espaço, e consequentemente de nossa relação com ele, que é uma das  qualidades centrais de seu trabalho. Lembra-nos que a arte que importa, seja  pictórica ou não, é sempre um enigma.

Taisa Palhares

A nova paisagem nas telas de Renata Pelegrini

Em sua primeira exposição individual, na Casa Contemporânea, pintora exibe maturidade e técnica

A questão do sublime na paisagem contemporânea não é naturalmente marcada pela concepção que tinham Burke e Kant no passado nem pelo aspecto numinoso destacado por Rudolf Oto depois deles. É provável que nem mesmo o pós-moderno Lyotard possa ser adotado como referência quando tenta redefinir o sublime na arte contemporânea, pois considera apenas parcialmente como as novas tecnologias mudam esse conceito. Uma pintora que abre nesta sexta, 26, sua primeira exposição individual, Renata Pelegrini, pode ser de grande ajuda para os que estiverem dispostos a discutir o sublime e a representação artística da natureza estreitamente ligada à percepção do mundo natural intermediada pelo meio digital. Sua mostra na Casa Contemporânea, que reúne 20 obras, entre desenhos e pinturas, revela como o artista contemporâneo, munido da mais alta tecnologia digital, reage à maneira como a sociedade atual controla o olhar, ao afirmar radicalmente sua subjetividade com a técnica da pintura.

A pintora Renata Pelegrini, de São Paulo, une o rigor da caligrafia à expressão do gesto em sua obra

Esses trabalhos, de vistas interiores a paisagens recriadas com a ajuda da imagem digitalizada, estão inseridos numa corrente da pintura contemporânea que oscila entre a representação e a abstração. Para citar apenas um nome que parece ter afinidade com a pintura de Renata Pelegrini, a norte-americana Claire Sherman parece dividir com ela algumas questões filosóficas e estéticas, especialmente as teorias de Rancière sobre o jogo entre a “presença visível” e a invisibilidade. Rancière, cujo interesse na produção estética tem sua origem na teleologia hegeliana, divide com o crítico Clement Greenberg (1909-1994) algumas ideias sobre abstração e o ilusionismo do espaço tridimensional, mas abre uma brecha para manifestações expressivas dentro da concepção formalista.

A paulistana Renata Pelegrini, que só agora, aos 49 anos, sente-se confortável para mostrar seus trabalhos, faz uso de gestos expressivos para criar seu universo pictórico. São gestos rápidos, irreversíveis, ligados à larga experiência com a caligrafia, marco zero de sua formação. Professora, criada num meio familiar de pedagogos, ela participou antes de vários salões, no Brasil e na Itália, onde morou. Seu interesse por caligrafia a levou a frequentar cursos em diversos países (EUA, Itália, Suíça), histórico que se faz presente em telas e desenhos com a intervenção de traços precisos, subordinando a execução pictórica ao ordenamento formal caligráfico.

“A caligrafia é um trabalho monástico, exige disciplina, e a minha pintura é rápida, de gestos expressivos”, diz a pintora, que assume as “contradições” como frutos de seu tempo, marcado pela imprecisão e a incerteza. “Penso em Rancière, mas é uma reflexão a posteriori, que vem após a conclusão da pintura”, explica Renata, que teve aulas de história da arte com o crítico Rodrigo Naves e orientação do pintor Paulo Pasta.

Pintura de Renata Pelegrini, que usa a imagem fotográfica como referência de suas paisagens

Nascida em São Paulo e formada em Letras, a artista, também tradutora, tem estreita ligação com o universo literário. Ela cita o livro Água Viva, de Clarice Lispector, para explicar como se deu sua adesão ao mundo da pintura. Nesse texto derradeiro de Lispector, publicado pouco antes de sua morte, em 1973, a escritora traça uma relação analógica entre a escrita e a pintura, desconstruindo a primeira para que seja reconstruída pelo trabalho visual (nunca esquecendo que Clarice também foi pintora, embora mediana). O tema de Água Viva é o instante, o presente. O da pintura de Renata Pelegrini também é – o que explica a rapidez do traço expansivo feito com tinta acrílica, que seca numa velocidade industrial. No entanto, essas pinturas revelam sua filiação à tradição modernista, como observa a curadora da exposição, Taisa Palhares, citando particularmente Matisse e uma tela referencial sua, Porte-Fenêtre a Collioure (1914), primeira tentativa do pintor de transformar o preto no equivalente da luz. A tela, que retrata a porta da casa do artista em Collioure, no fim do verão de 1914, é uma composição no limite da abstração, registro dos tempos sombrios marcados pelo primeiro conflito mundial. Essa é igualmente a cor que predomina nas paisagens e vistas interiores de Renata Pelegrini, mas, no caso, não existe uma proposição metafórica nem o espaço ilusionista criado pela porta matissiana.

Seus desenhos, em carvão, sanguínea, grafite e giz são estruturados como uma composição arquitetônica em que o ambiente externo é contaminado pelo interno, aspecto mais visível nas pinturas, em que o preto, como elemento luminoso, tem algo de Goeldi, transformando locais reconhecíveis em abstrações, com imagens de segunda mão. “Costumo recorrer a imagens da internet ou a fotos de paisagens de lugares que visitei.” São apenas pretextos para a pintura, admite.

Antonio Gonçalves Filho

Renata Pelegrini: desenho e pintura

O livro “Cidades Invisíveis “, de Ítalo Calvino, nos traz a narrativa do comerciante/embaixador  Marco Polo ao poderoso conquistador Kublai Khan sobre cidades pelas quais passou em suas  viagens pelo vasto império do Khan. Calvino apresenta descrições de cidades inverossímeis  compostas por experiências as mais diversas, da literatura das Mil e Uma Noites ao cinema, de  viagens e de cidades reais (até onde Veneza pode ser real…), construídas pelas palavras de  Marco Polo e reconstruídas por seu ouvinte, Kublai Khan.

O tempo em que vivemos, a contemporaneidade, parece não ter uma convivência consensual  com linguagens mais tradicionais nas artes visuais, tais como desenho e pintura. Mesmo assim  artistas continuam optando por elas. Alguns produzindo trabalhos mais assimiláveis, com um ou  outro elemento capazes de provocar estranhamento; se valem da paródia ou do cinismo em  relação ao fazer e são trabalhos eminentemente visuais, diretos em sua apreensão. Outros  fazem a opção, ainda que neste caso seja menos uma opção do que uma necessidade interior  ou coerência com a maneira de pensar, por trabalhos que necessitam um tempo mais lento  para sua assimilação, tempo este que não temos mais.

Este segundo grupo possui [1] um comprometimento com sua produção muito forte, respeitoso  até, principalmente em relação a pintura. Há uma filiação, em maior ou menor grau, desses  artistas à características do que se convencionou denominar modernismo, tais como uma certa  autonomia do objeto de arte e a evidência autoral, mas desprovidos de um sentido épico ou  grandioso; um desencanto realista, como convém ao presente.

Quanto aos trabalhos de Renata Pelegrini podemos associar também uma visceral  expressividade. Desta maneira eles demandam do espectador um retirar-se do mundo para nos  voltarmos ao que nos pertence, aquilo que nos forma enquanto experiências vivenciadas.

Normalmente a pintura é considerada um trabalho mais elaborado do que o desenho, até  mesmo pelos artistas, onde muitas vezes o segundo, configurado no suporte papel, aparece  como um estudo, um esboço a ser melhorado na pintura. Não é o que acontece nesta  produção. Há uma autonomia entre ambas as linguagens; elas se alimentam, se equivalem ao  lidar com o motivo escolhido, guardando as especificidades pertinentes a cada linguagem.

Tanto os desenhos como as pinturas são de difícil classificação, paradoxalmente porque Renata  tem uma atitude mais afeita à contemporaneidade quanto às múltiplas influências e referências  que possui. Vão de Paulo Pasta a Iberê Camargo, de De Kooning a Sean Scully, de Richard Serra a Giacometti, de Albert Oehlen a William Kentridge, de Diebenkorn a Eduardo Stupia, de  Rosemarie Trockel a Julie Mehretu, sem esquecer suas muitas referências literárias onde  Fernando Pessoa é a mais forte. Esta diversidade acaba por deixar os trabalhos aos olhos do  público sem uma “ancoragem” por semelhança. Além disso, Renata escolheu, ou foi levada a  isto, uma abordagem mais arriscada do motivo principal de seus trabalhos que é o espaço  circundante, em maior ou menor escala; este risco reside na indefinição entre o reconhecível e  o não reconhecível.

Formalmente, tanto nos desenhos como nas pinturas, surgem elementos que estão mais  próximos do léxico moderno, mas devido à sua particular abordagem trazem uma atualização  contemporânea para os trabalhos.

O primeiro é o uso da perspectiva, mas que apenas alude a perspectiva correta ou geométrica.  Ela ora se decompõe em vários planos incongruentes questionando a planaridade do trabalho  ou se contrapõe ao espaço estabelecido através do uso de planos de cor. Esta concepção cria  um dinamismo reforçado pelo segundo elemento, a saber, as linhas. Estas linhas não são,  porém, linhas de contorno ou de limites a serem preenchidos e nem estão a serviço da  perspectiva; sua utilização em alguns trabalhos desestabiliza o conjunto. Elas são linhas de  força. Intensas, abertas. Além dos aspectos formais há outro que podemos associar a  fenomenologia e também à memória: o “genius loci”. Este termo, apropriado da arquitetura,  refere-se ao “espírito do lugar” e está associado à compreensão do que não é visível nos  espaços. Em seu processo de produção, Renata utiliza espaços que sofrem a alteração para o  que se denomina lugar. São esses lugares, seja em pequena escala e próximos ou amplos e  distantes, que ela fotografa ao visitá-los ou através de imagens de outros olhares que ela  reelabora em sua memória, nas impressões e experiências vivenciados, em contato com eles.

Tal qual Marco Polo, Renata Pelegrini descreve seus lugares e os compartilha conosco. A origem  desses lugares é específica, mas, no processo de nos mostrar o que está além de pilares, lajes,  pátios, mares ou paisagens, eles tornam-se todos os lugares e também nenhum. É preciso que  eles se reconstruam novamente em quem os vê.

Parafraseando Calvino (ou Marco Polo), tanto artista quanto espectador acreditam que  desenhos e pinturas são obras da mente ou do acaso, mas nem um nem outro são capazes de  sustentar pigmentos, linhas, composições colocadas em um suporte bidimensional. De obras de arte não aproveitamos suas belezas visíveis ou compreensíveis, mas as respostas que dão as  nossas perguntas. Ou os questionamentos que nos deixam.


¹ este grupo é heterogêneo e nada pequeno, composto por artistas jovens como Andre Ricardo ou Felipe Goes e outros com trajetória mais longa como Antônio Malta e Helena Carvalhosa.

Marcelo Salles