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Infiltrar-se no mundo pelo gesto – A força alquímica de Renata Pelegrini

Bianca Coutinho Dias | 2022

Renata Pelegrini é uma artista que se desdobra em muitas e de sua obra – que mistura o vivo da  existência a um caráter insondável – sobressai algo precioso, uma espécie de abalo semântico, uma fissura  ou infiltração que se estabelece na relação com o real. Em uma língua indecidível e indecifrável – ora  aquática, ora povoada de matérias diversas e mais palpáveis – ela recusa o sentido, perfura o saber e  assume o ensaio e a porosidade como eixos de uma invenção singularíssima.

O corpo da artista se infitra no corpo do mundo. Passando pelas águas e se endereçando aos  objetos e matérias diversas, esparrama seus gestos de invenção e é tocada pelas coisas, delas guardando  uma vibração íntima. Seu percurso – uma costura singular fisgada pelo enodamento entre gesto, memória e  materialidade – culmina no projeto “Trilogia da água” e nos convida a perfazer esse caminho de tessituras e  escrituras íntimas.

Da matéria mineral, de plantas ou raízes aladas, ela extrai a força do fragmento e faz, dessa lógica  segmentária, potência e sutileza. Seu olhar atravessa o claro e o escuro e cria coisas – como uma bandeja  de ossos ou uma mesa – em que são depositadas memórias reinventadas do arco da própria existência. São  artérias ou corais, transmutações, agulhas antigas, pincéis, troncos de plantas, tudo em uma coexistência  que conjuga dentro e fora, corpos natural e pulsional, poesia e ciência.

A ideia de infiltração está em tudo, como nos moldes de bordados da avó que se transformam em  coluna vertebral que se transformam em corais que, por sua vez, se transformam em artérias, em um fluxo  de linhas e vísceras. Em seu trabalho – que tanto perfura quanto cria a sutura – havia, desde o início, uma  inquietação que condensava camadas, texturas e gestualidades múltiplas na pintura, que agora retornam e  se expandem em uma cartografia, ao mesmo tempo, íntima e política.

Com movimentos incessantes, Renata Pelegrini perfaz caminhos de uma vida. Do gesto da pintura  se encaminha para uma pulverização infinita da gestualidade, em que pode fazer o decalque de portas e  monumentos, capturar relevos encontrados pelo mundo, criar escritas e ranhuras da superfície ou das  profundezas do oceano.

As primeiras peças de cerâmica fria foram chamadas “artérias e entranhas”, a maneira mais  profunda para nomear o visceral que sempre existiu como norte de seu trabalho. Há também os “fósseis”  que trazem o burburinho de potências femininas, reproduções de velhos modelos de tricô ou pedaços de  lugares – resíduos de cidades do outro lado do oceano. Sua relação com a origem se estabelece pela  sensibilidade e dedicação ensaística e múltipla com suportes, materiais e objetos diversos, da relação com  máscaras de origem ibérica a coleções de pequenos elementos improváveis como raízes de plantas, que  tocam na dimensão inaugural de diversas maneiras.

O trabalho de Renata Pelegrini é, antes de mais nada, uma escrita que, como em “Água viva” de  Clarice Lispector, se dá como uma experiência do cruzamento do limite, no mergulho na selva de palavras  ou imagens, no transbordamento como experiência radical com a linguagem.

A literatura de Clarice Lispector é, para o ensaísta Silviano Santiago, “um rio que inaugura o seu  próprio curso”. A personagem de “Água viva”, familiarizada com as imagens de cavernas e o mistério  aquoso, faz puro improviso com as palavras e arrisca-se a cruzar as fronteiras entre linguagens. É também a  partir de uma experiência inaugural que a obra de Renata se revela. A artista, tomada e encantada por  matérias tão heteróclitas, escreve sua vivência de sonhos e descida às raízes, um mergulho no abissal. Essa  analogia – entre o processo a que se propõe a narradora da obra lispectoriana e o mistério da criação de  Renata – revela zonas de passagem que operam conceitualmente no exercício poético e artístico. São  conchas, raízes aladas, fendas e vazios, aquilo que vive nas profundezas do mistério, máscaras, plantas

epífitas, pincéis. Tudo vive no lusco-fusco e no enigma de uma memória tão ancestral quanto futura,  fazendo lembrar de uma bonita frase de Ailton Krenak: “o ancestral é agora”.

A artista torna-se então inventora de tempos e geografias, com capilaridade e porosidade que  incluem o animal, o mineral, as plantas, o oceano. Perseguem-se aí os movimentos do próprio corpo, das  coisas todas, um novo saber – ou um não-saber. São giros e fluxos que vão se revelando ao longo do  percurso: da caligrafia disciplinar como professora, ela se volta para a caligrafia oriental, uma maneira de  impregnação que acontece pelo desenho, gesto ou escritura. Da mesa posta com gravetos, corais e agulhas  da avó, uma presença corpórea pulsa e se expande como uma força que, oriunda do início do trajeto pela  pintura, se ramifica através de fósseis, raízes, conchas e objetos de margens e espessuras diversas. Os rastros da vida são atualizados na obra, enquanto a obra atualiza a vida e o mundo.

Em tantos movimentos, a água aparece como o elemento das transações e das mutações, como o  esquema fundamental das misturas. Conjugando rigor e fruição, Renata Pelegrini aposta em um território  em que o escondido e o indizível afloram junto da imagem e a explodem por dentro, revirando o mundo e  propiciando a aparição de um fluxo que vagueia e tenta encontrar ponto de ancoragem na indeterminação,  em um lugar movente que rejeita as representações prontas. Um sentido, como na poesia, sempre por  fazer.

No belíssimo ensaio “Elogio da mão”, Henri Focillon afirma que a possessão do mundo exige essa  espécie de faro tátil. Ele diz: “A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objeto é habitado pelo peso,  que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só  corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam”. Esse é justamente o  lugar da convocação do gesto na obra de Renata Pelegrini, que sabe que são necessárias as mãos para que  se produza uma experiência de mundo que o gesto encarna. A gestualidade é pensada como uma ética a  ser reinventada e invocada. Há uma materialidade orgânica e visceral – como ela mesmo define – que rege  as figurações e desfigurações de seu trabalho, em um caleidoscópico de intensa delicadeza onde  rearranjam-se aspectos com imensa fineza estética.

Não por acaso, todas as expansões, exercícios de redução e movimentos concêntricos e excêntricos  desembocam nas águas. Trata-se de trabalho múltiplo, aberto ao campo poroso da existência, onde arte e  vida são articuladas de maneira única e vertiginosa. Suas ideias inquietas e fulgurantes em relação preciosa  com o vazio que abarca a força das ondas, a quietude da escuta do barulho de uma concha, artérias e  corais, pulsantes, criam uma espécie de cosmologia aquática e corpórea. Sua pintura se expande e encontra  nos limites da linguagem e da matéria aquilo que o psicanalista Jacques Lacan nomeou como real. O  inefável que vive na escrita inventada pela artista, vive também no gesto do calígrafo que “escreve uma  letra que comporta uma dimensão que não serve à comunicação e, no entanto, imprime-se algo, escreve-se  algo”.

Numa alquimia singular, Renata Pelegrini cultiva os fragmentos como relicários que guardam o  essencial. São estilhaços que abalam um saber mais ou menos estável e colocam seu trabalho na borda  desse fora de sentido, perfazendo o caminho sinuoso do não-saber.

No decorrer da história da humanidade as águas brotam como símbolo de transgressão e  imaginação, transbordamento criativo, dialética do reflexo e da profundidade, substância viva das imagens  poéticas. O encontro da artista com as águas sutiliza e expande as formas e feixes de relações entre  medidas e grandezas, alcança a força do inefável como aposta em uma fronteira para além dos limites  prontos, revelando o indizível e o impossível.