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O enigma da janela

Taisa Palhares | 2016

Um dos quadros mais icônicos da pintura do século 20, e que se mantém  enigmático até hoje, é a tela Porte-fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A  composição, em tons de azulado, verde, cinza, mas predominante preto, coloca-se  entre a representação e a não-representação de um espaço conhecido, vagamente  explicado pelo título, sintetizando a relação do artista com a abstração, à qual ele  nunca aderiu efetivamente. Assim como em outros trabalhos do pintor francês,  desenho e cor vivem em harmonia, ou seja, não há a predominância de um sobre  o outro, posto que o objetivo é superar a dicotomia que domina a história da  pintura desde o Renascimento.

Nota-se que o preto sintetiza essa relação, na medida em que é tanto linha  quanto cor. Aliás, ele é o centro da composição, aquilo que “vemos” no interior (ou  seria exterior?) da janela, o local onde nosso olhar se fixa, emanando uma  luminosidade que ressoa por todo o quadro. Como se sabe, Matisse, o maior  colorista da arte moderna, foi também o pintor que mais soube explorar o preto  enquanto cor – emanação de luz – realizando uma série de pinturas na qual esse  tom tem um papel central. Se é certo que esse quadro faz uma referência direta à outra pintura magistral da arte francesa, Le Balcon (1868) de Manet, ele  surpreende pela completa ausência de narrativa. O que predomina é quase um  sentimento de suspensão de qualquer ação, e o jogo entre a claridade das cores  quase transparentes e a luz negra. É um arcano da pintura de todos os tempos, o  que abriu à arte novos caminhos.

A meu ver, a produção de Renata Pelegrini filia-se diretamente a essa  tradição da pintura moderna que hoje está sendo ricamente retomada por vários  pintores contemporâneos. De uma forma que é muito mais visual do que  intelectual, no sentido que não se trata de pensar conceitualmente a pintura, como  muitos artistas fizeram depois de 1960. Mas repensar suas questões a partir do  próprio fazer. Por isso sua produção relativamente recente, cuja pesquisa se inicia  no desenho, levando para as telas uma qualidade gráfica marcante, apresenta uma  enorme coerência.

Seus desenhos, realizados em carvão, sanguínea, grafite e giz, já trazem a  ambiguidade espacial que marcará o uso do preto como cor: ora são linhas que estruturam os espaços, ora são manchas, muitas vezes alcançadas pelo gesto de  apagamento. Neles há um equilíbrio espacial entre o lugar reconhecível e a  abstração, mas também entre o peso e a luz do preto que magnetiza o olhar e a  experiência da leveza por meio das zonas esmaecidades de cores transparentes.

No caso de suas telas, o preto permanece uma potência de luz que serve  como imã da composição, entretanto convivendo com tonalidades tão fortes  quanto ele: azul, amarelo, ocre, verde, cinza, terracota, vermelho, rosa, entre  outras. Se por um lado a construção do espaço parece mais evidente (e muitas  vezes a artista parte da observação de fotografias), a composição nunca é  exatamente fechada ou plenamente reconhecível. Predomina um jogo entre o  movimento de traços em diagonal, como a sugerir o ponto de fuga, mas que de  certa maneira é constantemente tensionado por formas ou massas de cor quase  abstratas. O que se tem é o equilíbrio provisório, acentuado pela exploração de  elementos que sugerem o inacabado, como o escorrimento de tinta ou a evidência  gestual das pinceladas.

O mundo não tão sereno das pinturas de Renata Pelegrini é muitas vezes  atravessado por um fino traço quase imperceptível, realizado com um objeto  pontiagudo que risca a superfície da tela. Na composição, esses traços tornam-se protagonistas de novas direções para o nosso olhar. Na verdade, são linhas de  força que desestabilizam o reconhecimento instântaneo do que seria uma imagem  do real. Neste sentido, contribuem para sensação de construção e descontrução  do espaço, e consequentemente de nossa relação com ele, que é uma das  qualidades centrais de seu trabalho. Lembra-nos que a arte que importa, seja  pictórica ou não, é sempre um enigma.