O pictórico de Renata Pelegrini nos traga para um lugar outro. Instável, desassossegado, desestabilizador. A abordagem contemporânea da paisagem pela artista paulistana revela mais sobre esse sítio peculiar, cortado tanto por potentes linhas de força como por traços menores, delgados e mais pontuais, além das camadas de tinta, de cor e de luz que atestam embates intensos de diferentes naturezas. A construção dessa imagem sedutora é o atestado da habilidade de Renata, que ressalta por ferramentas visuais e conceituações mais relacionadas ao pensamento uma existência fugidia e essencial e também um certo desconcerto do mundo.
Inicialmente, vem a discussão sobre qual é esse lugar. Em A Condição Urbana, o teórico francês Olivier Mongin cria um tipo de nova teoria do urbanismo, lançando mão de conceitos da filosofia, da antropologia e da psicanálise, entre outros campos. Fugindo de um certo cinismo da ‘cultura de congestão’ de Rem Koolhaas, Mongin investiga a fenomenologia do habitante atual das megacidades e as necessidades centrais desses corpos, seja em limites, em relações, em trocas etc, no amálgama maximizado de fluxos hoje, num nível informacional e também no âmbito imagético. “Pensar em função do local é a oportunidade de reatar com a experiência urbana, com os estratos que a compõem no seio da paisagem global. Porque é a paisagem, ela própria, que deve dar corpo a uma outra apreensão dos limites”¹, diz ele.
Muito patente na produção constante de Renata é essa espacialidade marcada pelo singular. Para comentar isso, é necessário conhecer um pouco mais sobre o processo da artista em seus trabalhos e sua biografia. Graduada em letras, viveu períodos não tão curtos fora do país, destacadamente nos EUA e na Itália. Professora de idiomas, teve na caligrafia uma de suas atividades-chave nesses tempos, que forneceu a ela “disciplina e um trabalho quase monástico”, como gosta de frisar. Passado o gestual da produção nascente na pintura, o dado gráfico era predominante ainda no início, caracterizado por um cromatismo sóbrio.
O recorte pictórico, então, se impõe, e ela utiliza com desenvoltura a acrílica, que pode preencher tanto as superfícies mais comuns das telas quanto o linho, mais nobre e poroso. Os tamanhos variam, porém, por meio de uma escala mais generosa, seu labor encontra um notável florescer. Curioso é que a agilidade da acrílica a ajuda a reduzir o tempo na realização das obras, contudo sua utilização parece ter uma duração estendida, de uma dilatação temporal ampla – em outras palavras, atributos do óleo, visto em geral como mais ‘denso’. Assim, os assuntos pictóricos saltam mais aos olhos – o fundo original que se esvai após a aplicação de layers e matéria de tinta; as pinceladas por vezes mais concentradas, por vezes mais liquefeitas; a cor que pode ser resultante de uma ação manual mais obsessiva ou se exibir mais dissolvida e escorrida, entre outras características. Também é elogiável nessa área cromática a facilidade com a qual ela emprega o preto e, em fases mais novas, o verde e o ocre. Desta forma, renova referências tão distintas quanto Soulages e Goeldi, entre outros.
Tal lugar movediço construído por Renata ganha atualidade se pensarmos em como ela cruza especificidades de cada linguagem. A da pintura foi discutida faz pouco, mas ela certamente se relaciona com, por exemplo, a fotográfica. A artista utiliza registros de segunda mão, disponíveis na rede, ou feitos por ela mesma sem o preciosismo da ‘boa’ qualidade. No entanto, sempre ressalta arquiteturas e locais que prescindem da figura humana, mas cujos índices são bastante claros – ou seja, o dado vestigial da fotografia se fortalece. Ao elaborarmos recortes com quadros da artista, por exemplo, também surgem narrativas, algo opacas, como um audiovisual criado sem linearidade estanque, cujos protagonistas estão desaparecidos. É também próxima a linguagem cênica, já que os espaços podem abrigar palcos de sujeitos contemporâneos, colocando lado a lado a incompletude das ‘cenas’ criadas por Renata e um certo teatro do absurdo desenvolvido por personas em estado duradouro de solidão e solipsismo.
Já a obra gráfica da pintura de Renata é evidente, em trabalhos que são desenhos mais ‘puros’ – com carvão, giz, sanguínea, grafite e pastel – ou mistos, em que há componentes fortes da pintura. E o fino traço que aparece em numerosas composições da artista lembra o que Paulo Pasta já realçara a respeito dos dois suportes: “Temporalidade seria a palavra que marcaria melhor suas identidades e diferenças. (…) Precisão e acúmulo, casamento de risco e condensação”². E ainda mais: a diagonal tão presente nas telas de Renata reforça o comentário de Peter Pál Pelbart, no texto A arte de viver nas linhas, sobre conceito desenvolvido por Deleuze. “(…) A linha de fuga ou nômade é aquela que foge e faz fugir um mundo, como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, ‘em direção de uma destinação desconhecida, não previsível, não preexistente’”³, escreve Pelbart.
O corpus gráfico-pictórico da artista, então, sedimenta a prática da artista na investigação persistente de uma paisagem móvel e que a inscreve fortemente na contemporaneidade, fragilizando um certo léxico moderno colado a priori na leitura de sua produção. Portanto, representados por Renata Pelegrini, pontos de fuga, pilares, postes, guarda-corpos, perspectivas, mastros e outros volumosos testemunhos de quebradiça solidez, entre a figura e a abstração, nos dão uma ideia pungente sobre a nossa finitude.
Mario Gioia, julho de 2016
- MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 240
- DERDYK, Edith (org.). Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo, Senac São Paulo, 2007, p. 87
- DERDYK, Edith. Idem, p. 285