Renata Pelegrini é uma artista que se desdobra em muitas e de sua obra – que mistura o vivo da existência a um caráter insondável – sobressai algo precioso, uma espécie de abalo semântico, uma fissura ou infiltração que se estabelece na relação com o real. Em uma língua indecidível e indecifrável – ora aquática, ora povoada de matérias diversas e mais palpáveis – ela recusa o sentido, perfura o saber e assume o ensaio e a porosidade como eixos de uma invenção singularíssima.
O corpo da artista se infitra no corpo do mundo. Passando pelas águas e se endereçando aos objetos e matérias diversas, esparrama seus gestos de invenção e é tocada pelas coisas, delas guardando uma vibração íntima. Seu percurso – uma costura singular fisgada pelo enodamento entre gesto, memória e materialidade – culmina no projeto “Trilogia da água” e nos convida a perfazer esse caminho de tessituras e escrituras íntimas.
Da matéria mineral, de plantas ou raízes aladas, ela extrai a força do fragmento e faz, dessa lógica segmentária, potência e sutileza. Seu olhar atravessa o claro e o escuro e cria coisas – como uma bandeja de ossos ou uma mesa – em que são depositadas memórias reinventadas do arco da própria existência. São artérias ou corais, transmutações, agulhas antigas, pincéis, troncos de plantas, tudo em uma coexistência que conjuga dentro e fora, corpos natural e pulsional, poesia e ciência.
A ideia de infiltração está em tudo, como nos moldes de bordados da avó que se transformam em coluna vertebral que se transformam em corais que, por sua vez, se transformam em artérias, em um fluxo de linhas e vísceras. Em seu trabalho – que tanto perfura quanto cria a sutura – havia, desde o início, uma inquietação que condensava camadas, texturas e gestualidades múltiplas na pintura, que agora retornam e se expandem em uma cartografia, ao mesmo tempo, íntima e política.
Com movimentos incessantes, Renata Pelegrini perfaz caminhos de uma vida. Do gesto da pintura se encaminha para uma pulverização infinita da gestualidade, em que pode fazer o decalque de portas e monumentos, capturar relevos encontrados pelo mundo, criar escritas e ranhuras da superfície ou das profundezas do oceano.
As primeiras peças de cerâmica fria foram chamadas “artérias e entranhas”, a maneira mais profunda para nomear o visceral que sempre existiu como norte de seu trabalho. Há também os “fósseis” que trazem o burburinho de potências femininas, reproduções de velhos modelos de tricô ou pedaços de lugares – resíduos de cidades do outro lado do oceano. Sua relação com a origem se estabelece pela sensibilidade e dedicação ensaística e múltipla com suportes, materiais e objetos diversos, da relação com máscaras de origem ibérica a coleções de pequenos elementos improváveis como raízes de plantas, que tocam na dimensão inaugural de diversas maneiras.
O trabalho de Renata Pelegrini é, antes de mais nada, uma escrita que, como em “Água viva” de Clarice Lispector, se dá como uma experiência do cruzamento do limite, no mergulho na selva de palavras ou imagens, no transbordamento como experiência radical com a linguagem.
A literatura de Clarice Lispector é, para o ensaísta Silviano Santiago, “um rio que inaugura o seu próprio curso”. A personagem de “Água viva”, familiarizada com as imagens de cavernas e o mistério aquoso, faz puro improviso com as palavras e arrisca-se a cruzar as fronteiras entre linguagens. É também a partir de uma experiência inaugural que a obra de Renata se revela. A artista, tomada e encantada por matérias tão heteróclitas, escreve sua vivência de sonhos e descida às raízes, um mergulho no abissal. Essa analogia – entre o processo a que se propõe a narradora da obra lispectoriana e o mistério da criação de Renata – revela zonas de passagem que operam conceitualmente no exercício poético e artístico. São conchas, raízes aladas, fendas e vazios, aquilo que vive nas profundezas do mistério, máscaras, plantas
epífitas, pincéis. Tudo vive no lusco-fusco e no enigma de uma memória tão ancestral quanto futura, fazendo lembrar de uma bonita frase de Ailton Krenak: “o ancestral é agora”.
A artista torna-se então inventora de tempos e geografias, com capilaridade e porosidade que incluem o animal, o mineral, as plantas, o oceano. Perseguem-se aí os movimentos do próprio corpo, das coisas todas, um novo saber – ou um não-saber. São giros e fluxos que vão se revelando ao longo do percurso: da caligrafia disciplinar como professora, ela se volta para a caligrafia oriental, uma maneira de impregnação que acontece pelo desenho, gesto ou escritura. Da mesa posta com gravetos, corais e agulhas da avó, uma presença corpórea pulsa e se expande como uma força que, oriunda do início do trajeto pela pintura, se ramifica através de fósseis, raízes, conchas e objetos de margens e espessuras diversas. Os rastros da vida são atualizados na obra, enquanto a obra atualiza a vida e o mundo.
Em tantos movimentos, a água aparece como o elemento das transações e das mutações, como o esquema fundamental das misturas. Conjugando rigor e fruição, Renata Pelegrini aposta em um território em que o escondido e o indizível afloram junto da imagem e a explodem por dentro, revirando o mundo e propiciando a aparição de um fluxo que vagueia e tenta encontrar ponto de ancoragem na indeterminação, em um lugar movente que rejeita as representações prontas. Um sentido, como na poesia, sempre por fazer.
No belíssimo ensaio “Elogio da mão”, Henri Focillon afirma que a possessão do mundo exige essa espécie de faro tátil. Ele diz: “A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objeto é habitado pelo peso, que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam”. Esse é justamente o lugar da convocação do gesto na obra de Renata Pelegrini, que sabe que são necessárias as mãos para que se produza uma experiência de mundo que o gesto encarna. A gestualidade é pensada como uma ética a ser reinventada e invocada. Há uma materialidade orgânica e visceral – como ela mesmo define – que rege as figurações e desfigurações de seu trabalho, em um caleidoscópico de intensa delicadeza onde rearranjam-se aspectos com imensa fineza estética.
Não por acaso, todas as expansões, exercícios de redução e movimentos concêntricos e excêntricos desembocam nas águas. Trata-se de trabalho múltiplo, aberto ao campo poroso da existência, onde arte e vida são articuladas de maneira única e vertiginosa. Suas ideias inquietas e fulgurantes em relação preciosa com o vazio que abarca a força das ondas, a quietude da escuta do barulho de uma concha, artérias e corais, pulsantes, criam uma espécie de cosmologia aquática e corpórea. Sua pintura se expande e encontra nos limites da linguagem e da matéria aquilo que o psicanalista Jacques Lacan nomeou como real. O inefável que vive na escrita inventada pela artista, vive também no gesto do calígrafo que “escreve uma letra que comporta uma dimensão que não serve à comunicação e, no entanto, imprime-se algo, escreve-se algo”.
Numa alquimia singular, Renata Pelegrini cultiva os fragmentos como relicários que guardam o essencial. São estilhaços que abalam um saber mais ou menos estável e colocam seu trabalho na borda desse fora de sentido, perfazendo o caminho sinuoso do não-saber.
No decorrer da história da humanidade as águas brotam como símbolo de transgressão e imaginação, transbordamento criativo, dialética do reflexo e da profundidade, substância viva das imagens poéticas. O encontro da artista com as águas sutiliza e expande as formas e feixes de relações entre medidas e grandezas, alcança a força do inefável como aposta em uma fronteira para além dos limites prontos, revelando o indizível e o impossível.