Realizadas entre 2008 e 2023, a exposição T E N T A C U L A R de Renata Pelegrini exibe pela primeira vez parte de um conjunto de obras reunidas. Tal qual na língua portuguesa, tentacular exige a mesma grafia e sentido em diversos idiomas, como no espanhol, italiano e inglês. O vocábulo tentáculo vem do latim tentaculum e significa antena, de tentare, sinalizando o sentir e o tentar. A aranha, um aracnídeo tentacular e o polvo, um molusco tentacular, possuem dedos como humanos, e por sua tentacularidade são capazes de estabelecer sofisticadas redes e interconexões de linhas, não pontos, nem esferas. Articulando tarefas, circunstâncias e ocasiões ao longo dos preparativos da mostra, houve um instante específico em que Renata teceu um comentário exprimindo sentir-se cheia de braços como um polvo. Sua sensibilização imediata foi então a de compartilhar através de conversas, um texto de Donna Haraway (1944), bióloga e filósofa estadounidense, entitulado: Pensamento tentacular: Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno, de 2016. Sob a perspectiva da geohistória, os polvos são chamados de aranhas marinhas não somente por sua tentacularidade de ventosas, mas também por seus hábitos. A relação de Gaia com Caos é antiga junto a ciência e filosofia. Selecionadas para a mostra, a artista apresenta em chiaroscuro uma teia tênue de obras, situações e épocas distintas de sua produção, conformando em p/b e cor uma malha de laços de luz e sombra. T E N T A C U L A R é o nome tanto de sua pesquisa artística, quanto a busca e seu modo de operar incessantes. Representa o lugar em que os horizontes de terra (raízes), água (mar) e ar (céu) se encontram em uma só direção/ perdição. Sem definição temporal, a ideia fossilizada de um futuro é a sua reciclagem de conceitos, práticas e materiais. Na exposição nos deparamos com o rearranjo do barulho e a pausa para a observação. A sensorialidade do silêncio está abaixo do solo e no fundo do mar. O antagonismo do ruído branco e da quietude obscurecida surge presente nos detalhes da arquitetura e na iluminação das salas expositivas. O corpo da artista se mostra ancorado ora em terra, ora solto no espaço de interseção de marear, que vai da costa ao alto mar. Com o marulho e o barro, vem a bonança, depois da tempestade.
O famoso e premiado documentário Professor Polvo (My Octopus Teacher, 2020) de Pippa Ehrlich e James Reed difundiu a realidade da comunicação multiespécies. Todos somos líquens, diz o fitolinguista. Nos organizamos como cogumelos, assume a micóloga. As cidades parecem um recife de coral, imaginam os oceanógrafos. Vamos jogar cama-de-gato?, convidam as crianças. Um dos constantes trabalhos de Renata é o exercício de reorganizar arquivisticamente sua própria produção. Entre textos influentes lidos recentemente pela artista consta o Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação, 2021, de Vinciane Despret (1959), filósofa belga das ciências e natureza. É mais uma referência fortalecedora que a moveu para a exibição de peças que se situam entre a calmaria da margem e o desfixamento da borda.
O agrupamento de obras proposto pela mostra T E N T A C U L A R é inédito. Como uma carta náutica mestra, aparece a peça escultórica de papel com escrituras Olísipo (nome de Lisboa na Roma Antiga) juntamente a Attaccati, que se assemelha a um instigante diário de bordo da vida cotidiana, realçando a fragilidade da vida durante a fase pandêmica mais dura. Já Strata dispõe lado a lado expressões caligráficas, e Mappa alinhava desenhos geográficos como mapas de navegação em cidades, plantas
de urbanismo e cartografia. De Senciente (o significado é o de seres que percebem com os sentidos), temos montadas sobre superfícies planas, como gabinetes de arqueologia e paleontologia, as séries Fósseis e a Artérias e Entranhas – com máscaras, pincéis, corais, cirandas, agulhas, gravetos, moedas, ferramentas, insetos – uma homenagem em preservação da memória da terra ancestral. Sob uma estrutura de árvore genealógica, as peças criam relação com a história do entorno expositivo, resultando em uma catalogação artístico-científico objetal de universos femininos das antepassadas da artista. Cartas de marear faz recordar o método imemorial de uso instintivo da forquilha (hidroestesia) para encontrar água nas regiões mais secas do planeta. Os objetos são inspirados em um gráfico sensível, construído por gravetos como uma bússola rudimentar, e que servem para reconectar estados de espírito e despertar o senso de rumo na navegação oceânica dos canoeiros polinésios da antiguidade.
T E N T A C U L A R é o atual corpus de Renata Pelegrini. A percepção de destreza do jogo de cartas na mão imbuído no labor da artista é a hipótese da curadoria. Como um quebra-cabeças, a vontade de conectar por encaixe fragmentos do convívio de trocas, une para esta exibição desde noções de mind maps a impressões quase ficcionais do cenário subaquático protagonizado por Dumbo octopus. Em seu livro lançado durante o período da mostra enxergamos bem o seu milieu de artista, pois trata-se de uma singular manipulação da edição, um embaralhar de trabalhos no finito, incitando acertos, enganos, tentativas, entrelaçamentos e acasos em infindáveis combinações.