O livro “Cidades Invisíveis “, de Ítalo Calvino, nos traz a narrativa do comerciante/embaixador Marco Polo ao poderoso conquistador Kublai Khan sobre cidades pelas quais passou em suas viagens pelo vasto império do Khan. Calvino apresenta descrições de cidades inverossímeis compostas por experiências as mais diversas, da literatura das Mil e Uma Noites ao cinema, de viagens e de cidades reais (até onde Veneza pode ser real…), construídas pelas palavras de Marco Polo e reconstruídas por seu ouvinte, Kublai Khan.
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O tempo em que vivemos, a contemporaneidade, parece não ter uma convivência consensual com linguagens mais tradicionais nas artes visuais, tais como desenho e pintura. Mesmo assim artistas continuam optando por elas. Alguns produzindo trabalhos mais assimiláveis, com um ou outro elemento capazes de provocar estranhamento; se valem da paródia ou do cinismo em relação ao fazer e são trabalhos eminentemente visuais, diretos em sua apreensão. Outros fazem a opção, ainda que neste caso seja menos uma opção do que uma necessidade interior ou coerência com a maneira de pensar, por trabalhos que necessitam um tempo mais lento para sua assimilação, tempo este que não temos mais.
Este segundo grupo possui [1] um comprometimento com sua produção muito forte, respeitoso até, principalmente em relação a pintura. Há uma filiação, em maior ou menor grau, desses artistas à características do que se convencionou denominar modernismo, tais como uma certa autonomia do objeto de arte e a evidência autoral, mas desprovidos de um sentido épico ou grandioso; um desencanto realista, como convém ao presente.
Quanto aos trabalhos de Renata Pelegrini podemos associar também uma visceral expressividade. Desta maneira eles demandam do espectador um retirar-se do mundo para nos voltarmos ao que nos pertence, aquilo que nos forma enquanto experiências vivenciadas.
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Normalmente a pintura é considerada um trabalho mais elaborado do que o desenho, até mesmo pelos artistas, onde muitas vezes o segundo, configurado no suporte papel, aparece como um estudo, um esboço a ser melhorado na pintura. Não é o que acontece nesta produção. Há uma autonomia entre ambas as linguagens; elas se alimentam, se equivalem ao lidar com o motivo escolhido, guardando as especificidades pertinentes a cada linguagem.
Tanto os desenhos como as pinturas são de difícil classificação, paradoxalmente porque Renata tem uma atitude mais afeita à contemporaneidade quanto às múltiplas influências e referências que possui. Vão de Paulo Pasta a Iberê Camargo, de De Kooning a Sean Scully, de Richard Serra a Giacometti, de Albert Oehlen a William Kentridge, de Diebenkorn a Eduardo Stupia, de Rosemarie Trockel a Julie Mehretu, sem esquecer suas muitas referências literárias onde Fernando Pessoa é a mais forte. Esta diversidade acaba por deixar os trabalhos aos olhos do público sem uma “ancoragem” por semelhança. Além disso, Renata escolheu, ou foi levada a isto, uma abordagem mais arriscada do motivo principal de seus trabalhos que é o espaço circundante, em maior ou menor escala; este risco reside na indefinição entre o reconhecível e o não reconhecível.
Formalmente, tanto nos desenhos como nas pinturas, surgem elementos que estão mais próximos do léxico moderno, mas devido à sua particular abordagem trazem uma atualização contemporânea para os trabalhos.
O primeiro é o uso da perspectiva, mas que apenas alude a perspectiva correta ou geométrica. Ela ora se decompõe em vários planos incongruentes questionando a planaridade do trabalho ou se contrapõe ao espaço estabelecido através do uso de planos de cor. Esta concepção cria um dinamismo reforçado pelo segundo elemento, a saber, as linhas. Estas linhas não são, porém, linhas de contorno ou de limites a serem preenchidos e nem estão a serviço da perspectiva; sua utilização em alguns trabalhos desestabiliza o conjunto. Elas são linhas de força. Intensas, abertas. Além dos aspectos formais há outro que podemos associar a fenomenologia e também à memória: o “genius loci”. Este termo, apropriado da arquitetura, refere-se ao “espírito do lugar” e está associado à compreensão do que não é visível nos espaços. Em seu processo de produção, Renata utiliza espaços que sofrem a alteração para o que se denomina lugar. São esses lugares, seja em pequena escala e próximos ou amplos e distantes, que ela fotografa ao visitá-los ou através de imagens de outros olhares que ela reelabora em sua memória, nas impressões e experiências vivenciados, em contato com eles.
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Tal qual Marco Polo, Renata Pelegrini descreve seus lugares e os compartilha conosco. A origem desses lugares é específica, mas, no processo de nos mostrar o que está além de pilares, lajes, pátios, mares ou paisagens, eles tornam-se todos os lugares e também nenhum. É preciso que eles se reconstruam novamente em quem os vê.
Parafraseando Calvino (ou Marco Polo), tanto artista quanto espectador acreditam que desenhos e pinturas são obras da mente ou do acaso, mas nem um nem outro são capazes de sustentar pigmentos, linhas, composições colocadas em um suporte bidimensional. De obras de arte não aproveitamos suas belezas visíveis ou compreensíveis, mas as respostas que dão as nossas perguntas. Ou os questionamentos que nos deixam.
¹ este grupo é heterogêneo e nada pequeno, composto por artistas jovens como Andre Ricardo ou Felipe Goes e outros com trajetória mais longa como Antônio Malta e Helena Carvalhosa.