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A voz de uma pintora

Rafael Vogt Maia Rosa | 2020

Por ocasião de sua primeira exposição individual, em fevereiro de 2016, foram publicados, em  catálogo e jornal, textos sobre Renata Pelegrini com apontamentos que interessa retomar aqui  para um pensamento sobre o momento atual de seu trabalho. O tangenciamento do moderno a  partir de aproximação feita por Taisa Palhares entre algumas obras da exposição e Porte fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A coincidência vista por Antonio Gonçalves Filho  entre aspectos da pintura de Renata e uma ambiguidade fundamental inscrita nos meandros da  representação naturalista, em telas de Claire Sherman. A lembrança de Água Viva (1973), de  Clarice Lispector, um livro que pensa sem parar o lugar da enunciação e no qual vemos surgir  a voz de uma pintora.

Recentemente, parece que a produção de Pelegrini vem se afiançando cada vez mais na  ambiguidade. Esta pode ser sintetizada por um procedimento que transa os universos da pura  visualidade e da literatura, sustentado por um conhecimento específico de questões  substanciais e psíquicas, tais como a possibilidade de um automatismo subsistir pela liquidez e  tempo de secagem da tinta acrílica quando implicada no ritual da caligrafia. Assim, os termos  quantitativos dessa produção não permitem mais generalizações que no contexto de sua  exposição inaugural pareciam indisputáveis. Porque os aspectos formais ali confirmados eram  aqueles que se fundam na singularidade, obtidos, por seu contingenciamento metafísico, a  partir da escassez ou inexistência presumida no mundo natural. Diversamente, a investida  filosófica que a artista faz vem por um espírito declarado de teste e pretensão de um  escaneamento de grandes áreas e combinações cromáticas, bem como dos gestos mais escuros  que, nessa temporalidade da repetição, não cabem mais na espacialidade bidimensional, qual  anel de fumaça que só se vê por pouco, um sentido que aponta justamente para instância de  enunciação, para a deliberação anterior ao golpe “fatal”.

Lembra-se aqui de um políptico realizados em 1965, por Wesley Duke Lee, no Japão. Em um dos  quadrantes, o artista, que também esteve bastante envolvido com a caligrafia, cria o que parece  um gesto formalmente conclusivo e emergencial, inscrito em preto, como se nas mesmas  contingencias de uma tela de Franz Kline, mas que aparece literalmente amarrado com uma  corda, como se precipitasse um processo consumado, apropriável e repetível, como se fosse o  galho de uma árvore que, uma vez podada, se aprimora, restaura. Testemunhas contam que  Duke Lee produziu esse conjunto em espaço exíguo e que singularizou a relação de frontalidade  ao compor as partes no chão, aproximando a pintura dos jardins japoneses, como uma lida com  o natural no lugar da linguagem artística, tudo posteriormente articulado numa espécie de  biombo.

Nas palavras de Renata, encontramos, hoje, essa mesma predisposição à teatralidade,  confessada com limpidez: “O presente me interessa enquanto tempo e principalmente como  lugar. A arquitetura e o meu entorno sempre foram índices com os quais meu corpo se  relacionou para equilibrar-se entre o agora e o consecutivo. Em minhas pinturas e desenhos  essa dinâmica tensa está na presença do gesto e também da rapidez da execução; ambos  construindo uma estrutura arquitetônica que é ambígua e um lugar que é movediço: uma  quebradiça solidez. E que lugar é esse, que tem um cheio e um vazio, que requer energia para  ali se fixar e empenho similar para abandoná-lo, numa sobreposição de forças e leituras? Pra  mim é o lugar do tempo presente e da simultaneidade, da energia vital e da morte: é o lugar  que o corpo testemunha.”

Duas series mostram bem o fato da artista vir tencionando sua disciplina pictórica ao criar  expedientes paralelos que intensificam nossas percepções de esgotamento do suporte e nos  trazem um virtuosismo sem disfarces em suas alternativas para a aproximação canônica com o  quadro: no conjunto de mapas que realizou durante residência artística em Lisboa, a  frontalidade é deliberadamente quebrada por um registro feito a partir da correlação intuída  entre os traçados, cujo grau de automatismo não conseguimos avaliar para além de sua  conexão indicial, com percursos e geografia real na cidade. As formas não seriam mais  arbitrárias ali e dão impressão de proximidade e até intimismo ao que veríamos das alturas,  nesse lugar mítico de fusão de uma visão animal e humana.

Já em instalação sem título, feita entre 2017 e 2018, o desejo de deslocar a pura gestualidade  para fora do contexto da pintura se manifesta a partir do uso de projetores que imprimem nas  paredes um inventário criterioso de experiências com o grafite, próprio ao desenho, que  aludem a uma uniformidade técnica cinematográfica. Nesses dois projetos, a atualidade do  fazer artístico, a enunciação, não é mais balizada pelo peso da tradição pois se desprende e  retorna em investidas circulares como que para promover uma naturalização do que era  singular ao devolvê-lo ao contexto da experiência em que a fantasia ainda cria abundância.