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Antes da hora mais escura

Mario Gioia | 2017

O pictórico de Renata Pelegrini nos traga para um lugar outro. Instável,  desassossegado, desestabilizador. A abordagem contemporânea da paisagem pela  artista paulistana revela mais sobre esse sítio peculiar, cortado tanto por potentes  linhas de força como por traços menores, delgados e mais pontuais, além das camadas  de tinta, de cor e de luz que atestam embates intensos de diferentes naturezas. A  construção dessa imagem sedutora é o atestado da habilidade de Renata, que ressalta  por ferramentas visuais e conceituações mais relacionadas ao pensamento uma  existência fugidia e essencial e também um certo desconcerto do mundo.

Inicialmente, vem a discussão sobre qual é esse lugar. Em A Condição Urbana, o  teórico francês Olivier Mongin cria um tipo de nova teoria do urbanismo, lançando mão  de conceitos da filosofia, da antropologia e da psicanálise, entre outros campos.  Fugindo de um certo cinismo da ‘cultura de congestão’ de Rem Koolhaas, Mongin  investiga a fenomenologia do habitante atual das megacidades e as necessidades  centrais desses corpos, seja em limites, em relações, em trocas etc, no amálgama  maximizado de fluxos hoje, num nível informacional e também no âmbito imagético.  “Pensar em função do local é a oportunidade de reatar com a experiência urbana, com  os estratos que a compõem no seio da paisagem global. Porque é a paisagem, ela  própria, que deve dar corpo a uma outra apreensão dos limites”¹, diz ele.

Muito patente na produção constante de Renata é essa espacialidade marcada pelo  singular. Para comentar isso, é necessário conhecer um pouco mais sobre o processo da  artista em seus trabalhos e sua biografia. Graduada em letras, viveu períodos não tão  curtos fora do país, destacadamente nos EUA e na Itália. Professora de idiomas, teve na  caligrafia uma de suas atividades-chave nesses tempos, que forneceu a ela “disciplina e  um trabalho quase monástico”, como gosta de frisar. Passado o gestual da produção  nascente na pintura, o dado gráfico era predominante ainda no início, caracterizado por  um cromatismo sóbrio.

O recorte pictórico, então, se impõe, e ela utiliza com desenvoltura a acrílica, que pode  preencher tanto as superfícies mais comuns das telas quanto o linho, mais nobre e  poroso. Os tamanhos variam, porém, por meio de uma escala mais generosa, seu labor  encontra um notável florescer. Curioso é que a agilidade da acrílica a ajuda a reduzir o  tempo na realização das obras, contudo sua utilização parece ter uma duração  estendida, de uma dilatação temporal ampla – em outras palavras, atributos do óleo,  visto em geral como mais ‘denso’. Assim, os assuntos pictóricos saltam mais aos olhos – o fundo original que se esvai após a aplicação de layers e matéria de tinta; as pinceladas  por vezes mais concentradas, por vezes mais liquefeitas; a cor que pode ser resultante  de uma ação manual mais obsessiva ou se exibir mais dissolvida e escorrida, entre  outras características. Também é elogiável nessa área cromática a facilidade com a qual  ela emprega o preto e, em fases mais novas, o verde e o ocre. Desta forma, renova  referências tão distintas quanto Soulages e Goeldi, entre outros.

Tal lugar movediço construído por Renata ganha atualidade se pensarmos em como ela  cruza especificidades de cada linguagem. A da pintura foi discutida faz pouco, mas ela  certamente se relaciona com, por exemplo, a fotográfica. A artista utiliza registros de  segunda mão, disponíveis na rede, ou feitos por ela mesma sem o preciosismo da ‘boa’  qualidade. No entanto, sempre ressalta arquiteturas e locais que prescindem da figura  humana, mas cujos índices são bastante claros – ou seja, o dado vestigial da fotografia  se fortalece. Ao elaborarmos recortes com quadros da artista, por exemplo, também  surgem narrativas, algo opacas, como um audiovisual criado sem linearidade estanque,  cujos protagonistas estão desaparecidos. É também próxima a linguagem cênica, já que os espaços podem abrigar palcos de sujeitos contemporâneos, colocando lado a lado a incompletude das ‘cenas’ criadas por Renata e um certo teatro do absurdo desenvolvido  por personas em estado duradouro de solidão e solipsismo.

Já a obra gráfica da pintura de Renata é evidente, em trabalhos que são desenhos mais  ‘puros’ – com carvão, giz, sanguínea, grafite e pastel – ou mistos, em que há  componentes fortes da pintura. E o fino traço que aparece em numerosas composições  da artista lembra o que Paulo Pasta já realçara a respeito dos dois suportes:  “Temporalidade seria a palavra que marcaria melhor suas identidades e diferenças. (…)  Precisão e acúmulo, casamento de risco e condensação”². E ainda mais: a diagonal tão  presente nas telas de Renata reforça o comentário de Peter Pál Pelbart, no texto A arte  de viver nas linhas, sobre conceito desenvolvido por Deleuze. “(…) A linha de fuga ou  nômade é aquela que foge e faz fugir um mundo, como se alguma coisa nos levasse,  através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, ‘em direção de uma  destinação desconhecida, não previsível, não preexistente’”³, escreve Pelbart.

O corpus gráfico-pictórico da artista, então, sedimenta a prática da artista na  investigação persistente de uma paisagem móvel e que a inscreve fortemente na  contemporaneidade, fragilizando um certo léxico moderno colado a priori na leitura de  sua produção. Portanto, representados por Renata Pelegrini, pontos de fuga, pilares,  postes, guarda-corpos, perspectivas, mastros e outros volumosos testemunhos de  quebradiça solidez, entre a figura e a abstração, nos dão uma ideia pungente sobre a  nossa finitude.

Mario Gioia, julho de 2016 

  1. MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 240
  2. DERDYK, Edith (org.). Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo, Senac São Paulo,  2007, p. 87
  3. DERDYK, Edith. Idem, p. 285