Por ocasião de sua primeira exposição individual, em fevereiro de 2016, foram publicados, em catálogo e jornal, textos sobre Renata Pelegrini com apontamentos que interessa retomar aqui para um pensamento sobre o momento atual de seu trabalho. O tangenciamento do moderno a partir de aproximação feita por Taisa Palhares entre algumas obras da exposição e Porte fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A coincidência vista por Antonio Gonçalves Filho entre aspectos da pintura de Renata e uma ambiguidade fundamental inscrita nos meandros da representação naturalista, em telas de Claire Sherman. A lembrança de Água Viva (1973), de Clarice Lispector, um livro que pensa sem parar o lugar da enunciação e no qual vemos surgir a voz de uma pintora.
Recentemente, parece que a produção de Pelegrini vem se afiançando cada vez mais na ambiguidade. Esta pode ser sintetizada por um procedimento que transa os universos da pura visualidade e da literatura, sustentado por um conhecimento específico de questões substanciais e psíquicas, tais como a possibilidade de um automatismo subsistir pela liquidez e tempo de secagem da tinta acrílica quando implicada no ritual da caligrafia. Assim, os termos quantitativos dessa produção não permitem mais generalizações que no contexto de sua exposição inaugural pareciam indisputáveis. Porque os aspectos formais ali confirmados eram aqueles que se fundam na singularidade, obtidos, por seu contingenciamento metafísico, a partir da escassez ou inexistência presumida no mundo natural. Diversamente, a investida filosófica que a artista faz vem por um espírito declarado de teste e pretensão de um escaneamento de grandes áreas e combinações cromáticas, bem como dos gestos mais escuros que, nessa temporalidade da repetição, não cabem mais na espacialidade bidimensional, qual anel de fumaça que só se vê por pouco, um sentido que aponta justamente para instância de enunciação, para a deliberação anterior ao golpe “fatal”.
Lembra-se aqui de um políptico realizados em 1965, por Wesley Duke Lee, no Japão. Em um dos quadrantes, o artista, que também esteve bastante envolvido com a caligrafia, cria o que parece um gesto formalmente conclusivo e emergencial, inscrito em preto, como se nas mesmas contingencias de uma tela de Franz Kline, mas que aparece literalmente amarrado com uma corda, como se precipitasse um processo consumado, apropriável e repetível, como se fosse o galho de uma árvore que, uma vez podada, se aprimora, restaura. Testemunhas contam que Duke Lee produziu esse conjunto em espaço exíguo e que singularizou a relação de frontalidade ao compor as partes no chão, aproximando a pintura dos jardins japoneses, como uma lida com o natural no lugar da linguagem artística, tudo posteriormente articulado numa espécie de biombo.
Nas palavras de Renata, encontramos, hoje, essa mesma predisposição à teatralidade, confessada com limpidez: “O presente me interessa enquanto tempo e principalmente como lugar. A arquitetura e o meu entorno sempre foram índices com os quais meu corpo se relacionou para equilibrar-se entre o agora e o consecutivo. Em minhas pinturas e desenhos essa dinâmica tensa está na presença do gesto e também da rapidez da execução; ambos construindo uma estrutura arquitetônica que é ambígua e um lugar que é movediço: uma quebradiça solidez. E que lugar é esse, que tem um cheio e um vazio, que requer energia para ali se fixar e empenho similar para abandoná-lo, numa sobreposição de forças e leituras? Pra mim é o lugar do tempo presente e da simultaneidade, da energia vital e da morte: é o lugar que o corpo testemunha.”
Duas series mostram bem o fato da artista vir tencionando sua disciplina pictórica ao criar expedientes paralelos que intensificam nossas percepções de esgotamento do suporte e nos trazem um virtuosismo sem disfarces em suas alternativas para a aproximação canônica com o quadro: no conjunto de mapas que realizou durante residência artística em Lisboa, a frontalidade é deliberadamente quebrada por um registro feito a partir da correlação intuída entre os traçados, cujo grau de automatismo não conseguimos avaliar para além de sua conexão indicial, com percursos e geografia real na cidade. As formas não seriam mais arbitrárias ali e dão impressão de proximidade e até intimismo ao que veríamos das alturas, nesse lugar mítico de fusão de uma visão animal e humana.
Já em instalação sem título, feita entre 2017 e 2018, o desejo de deslocar a pura gestualidade para fora do contexto da pintura se manifesta a partir do uso de projetores que imprimem nas paredes um inventário criterioso de experiências com o grafite, próprio ao desenho, que aludem a uma uniformidade técnica cinematográfica. Nesses dois projetos, a atualidade do fazer artístico, a enunciação, não é mais balizada pelo peso da tradição pois se desprende e retorna em investidas circulares como que para promover uma naturalização do que era singular ao devolvê-lo ao contexto da experiência em que a fantasia ainda cria abundância.