Exposição Individual




















Texto crítico
O enigma da janela
Um dos quadros mais icônicos da pintura do século 20, e que se mantém enigmático até hoje, é a tela Porte-fenêtre à Collioure (1914), de Henri Matisse. A composição, em tons de azulado, verde, cinza, mas predominante preto, coloca-se entre a representação e a não-representação de um espaço conhecido, vagamente explicado pelo título, sintetizando a relação do artista com a abstração, à qual ele nunca aderiu efetivamente. Assim como em outros trabalhos do pintor francês, desenho e cor vivem em harmonia, ou seja, não há a predominância de um sobre o outro, posto que o objetivo é superar a dicotomia que domina a história da pintura desde o Renascimento.
Nota-se que o preto sintetiza essa relação, na medida em que é tanto linha quanto cor. Aliás, ele é o centro da composição, aquilo que “vemos” no interior (ou seria exterior?) da janela, o local onde nosso olhar se fixa, emanando uma luminosidade que ressoa por todo o quadro. Como se sabe, Matisse, o maior colorista da arte moderna, foi também o pintor que mais soube explorar o preto enquanto cor – emanação de luz – realizando uma série de pinturas na qual esse tom tem um papel central. Se é certo que esse quadro faz uma referência direta à outra pintura magistral da arte francesa, Le Balcon (1868) de Manet, ele surpreende pela completa ausência de narrativa. O que predomina é quase um sentimento de suspensão de qualquer ação, e o jogo entre a claridade das cores quase transparentes e a luz negra. É um arcano da pintura de todos os tempos, o que abriu à arte novos caminhos.
A meu ver, a produção de Renata Pelegrini filia-se diretamente a essa tradição da pintura moderna que hoje está sendo ricamente retomada por vários pintores contemporâneos. De uma forma que é muito mais visual do que intelectual, no sentido que não se trata de pensar conceitualmente a pintura, como muitos artistas fizeram depois de 1960. Mas repensar suas questões a partir do próprio fazer. Por isso sua produção relativamente recente, cuja pesquisa se inicia no desenho, levando para as telas uma qualidade gráfica marcante, apresenta uma enorme coerência.
Seus desenhos, realizados em carvão, sanguínea, grafite e giz, já trazem a ambiguidade espacial que marcará o uso do preto como cor: ora são linhas que estruturam os espaços, ora são manchas, muitas vezes alcançadas pelo gesto de apagamento. Neles há um equilíbrio espacial entre o lugar reconhecível e a abstração, mas também entre o peso e a luz do preto que magnetiza o olhar e a experiência da leveza por meio das zonas esmaecidades de cores transparentes.
No caso de suas telas, o preto permanece uma potência de luz que serve como imã da composição, entretanto convivendo com tonalidades tão fortes quanto ele: azul, amarelo, ocre, verde, cinza, terracota, vermelho, rosa, entre outras. Se por um lado a construção do espaço parece mais evidente (e muitas vezes a artista parte da observação de fotografias), a composição nunca é exatamente fechada ou plenamente reconhecível. Predomina um jogo entre o movimento de traços em diagonal, como a sugerir o ponto de fuga, mas que de certa maneira é constantemente tensionado por formas ou massas de cor quase abstratas. O que se tem é o equilíbrio provisório, acentuado pela exploração de elementos que sugerem o inacabado, como o escorrimento de tinta ou a evidência gestual das pinceladas.
O mundo não tão sereno das pinturas de Renata Pelegrini é muitas vezes atravessado por um fino traço quase imperceptível, realizado com um objeto pontiagudo que risca a superfície da tela. Na composição, esses traços tornam-se protagonistas de novas direções para o nosso olhar. Na verdade, são linhas de força que desestabilizam o reconhecimento instântaneo do que seria uma imagem do real. Neste sentido, contribuem para sensação de construção e descontrução do espaço, e consequentemente de nossa relação com ele, que é uma das qualidades centrais de seu trabalho. Lembra-nos que a arte que importa, seja pictórica ou não, é sempre um enigma.
Taisa Palhares
Texto de apresentação do curador
Renata Pelegrini: desenho e pintura.
O livro “Cidades Invisíveis “, de Ítalo Calvino, nos traz a narrativa do comerciante/embaixador Marco Polo ao poderoso conquistador Kublai Khan sobre cidades pelas quais passou em suas viagens pelo vasto império do Khan. Calvino apresenta descrições de cidades inverossímeis compostas por experiências as mais diversas, da literatura das Mil e Uma Noites ao cinema, de viagens e de cidades reais (até onde Veneza pode ser real…), construídas pelas palavras de Marco Polo e reconstruídas por seu ouvinte, Kublai Khan.
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O tempo em que vivemos, a contemporaneidade, parece não ter uma convivência consensual com linguagens mais tradicionais nas artes visuais, tais como desenho e pintura. Mesmo assim artistas continuam optando por elas. Alguns produzindo trabalhos mais assimiláveis, com um ou outro elemento capazes de provocar estranhamento; se valem da paródia ou do cinismo em relação ao fazer e são trabalhos eminentemente visuais, diretos em sua apreensão. Outros fazem a opção, ainda que neste caso seja menos uma opção do que uma necessidade interior ou coerência com a maneira de pensar, por trabalhos que necessitam um tempo mais lento para sua assimilação, tempo este que não temos mais.
Este segundo grupo possui [1] um comprometimento com sua produção muito forte, respeitoso até, principalmente em relação a pintura. Há uma filiação, em maior ou menor grau, desses artistas à características do que se convencionou denominar modernismo, tais como uma certa autonomia do objeto de arte e a evidência autoral, mas desprovidos de um sentido épico ou grandioso; um desencanto realista, como convém ao presente.
Quanto aos trabalhos de Renata Pelegrini podemos associar também uma visceral expressividade. Desta maneira eles demandam do espectador um retirar-se do mundo para nos voltarmos ao que nos pertence, aquilo que nos forma enquanto experiências vivenciadas.
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Normalmente a pintura é considerada um trabalho mais elaborado do que o desenho, até mesmo pelos artistas, onde muitas vezes o segundo, configurado no suporte papel, aparece como um estudo, um esboço a ser melhorado na pintura. Não é o que acontece nesta produção. Há uma autonomia entre ambas as linguagens; elas se alimentam, se equivalem ao lidar com o motivo escolhido, guardando as especificidades pertinentes a cada linguagem.
Tanto os desenhos como as pinturas são de difícil classificação, paradoxalmente porque Renata tem uma atitude mais afeita à contemporaneidade quanto às múltiplas influências e referências que possui. Vão de Paulo Pasta a Iberê Camargo, de De Kooning a Sean Scully, de Richard Serra a Giacometti, de Albert Oehlen a William Kentridge, de Diebenkorn a Eduardo Stupia, de Rosemarie Trockel a Julie Mehretu, sem esquecer suas muitas referências literárias onde Fernando Pessoa é a mais forte. Esta diversidade acaba por deixar os trabalhos aos olhos do público sem uma “ancoragem” por semelhança. Além disso, Renata escolheu, ou foi levada a isto, uma abordagem mais arriscada do motivo principal de seus trabalhos que é o espaço circundante, em maior ou menor escala; este risco reside na indefinição entre o reconhecível e o não reconhecível.
Formalmente, tanto nos desenhos como nas pinturas, surgem elementos que estão mais próximos do léxico moderno, mas devido à sua particular abordagem trazem uma atualização contemporânea para os trabalhos.
O primeiro é o uso da perspectiva, mas que apenas alude a perspectiva correta ou geométrica. Ela ora se decompõe em vários planos incongruentes questionando a planaridade do trabalho ou se contrapõe ao espaço estabelecido através do uso de planos de cor. Esta concepção cria um dinamismo reforçado pelo segundo elemento, a saber, as linhas. Estas linhas não são, porém, linhas de contorno ou de limites a serem preenchidos e nem estão a serviço da perspectiva; sua utilização em alguns trabalhos desestabiliza o conjunto. Elas são linhas de força. Intensas, abertas. Além dos aspectos formais há outro que podemos associar a fenomenologia e também à memória: o “genius loci”. Este termo, apropriado da arquitetura, refere-se ao “espírito do lugar” e está associado à compreensão do que não é visível nos espaços . Em seu processo de produção, Renata utiliza espaços que sofrem a alteração para o que se denomina lugar. São esses lugares, seja em pequena escala e próximos ou amplos e distantes, que ela fotografa ao visitá-los ou através de imagens de outros olhares que ela reelabora em sua memória, nas impressões e experiências vivenciados, em contato com eles.
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Tal qual Marco Polo, Renata Pelegrini descreve seus lugares e os compartilha conosco. A origem desses lugares é específica mas, no processo de nos mostrar o que está além de pilares, lajes, pátios, mares ou paisagens, eles tornam-se todos os lugares e também nenhum. É preciso que eles se reconstruam novamente em quem os vê.
Parafraseando Calvino (ou Marco Polo), tanto artista quanto espectador acreditam que desenhos e pinturas são obras da mente ou do acaso, mas nem um nem outro são capazes de sustentar pigmentos, linhas, composições colocadas em um suporte bidimensional. De obras de arte não aproveitamos suas belezas visíveis ou compreensíveis, mas as respostas que dão as nossas perguntas. Ou os questionamentos que nos deixam.
Marcelo Salles
[1] Este grupo , heterogêneo e nada pequeno, é composto por artistas jovens como André Ricardo e Felipe Goés ou com trajetória mais longa como Antônio Malta e Helena Carvalhosa, entre outros.
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